Recordando Grimm e um enigma
Post tenebras, spero lucem.
Miguel de Cervantes
Há cento e cinqüenta anos nasceu Johann Georg Grimm, um artista alemão que
exerceria profunda influência no desenvolvimento da pintura brasileira
posterior às duas últimas décadas do século XIX. Como era de se esperar,
não houve qualquer comemoração oficial ou particular que assinalasse a
data. Escrevo este texto no mês de novembro [1996], e pode ser que os
leitores mais exigentes desejassem que além de ter havido comemoração ela
tivesse acontecido no exato mês de nascimento de Grimm. Justo mas
impossível, pois até esse momento ignorava-se entre nós a data precisa do
seu nascimento, que foi a 22 de abril de 1846. Entretanto, é realmente
lamentável essa nossa capacidade de esquecer os marcos de nossa história
artística. Por isso, aproveito o lançamento da nova publicação periódica da
Associação Brasileira de Críticos de Arte para recordar algo sobre Grimm e
sua obra.
Não obstante a atuação do artista tenha sido reconhecida e
prestigiada desde o momento em que apresentou seus trabalhos no Rio de
Janeiro, em 1882 na exposição da Sociedade Brasileira de Belas Artes (Liceu
de Artes e Ofícios), pouco sabemos sobre sua vida, o que de resto é bem
comum em se tratando de artistas de qualquer época no Brasil. Meu livro
sobre o Grupo Grimm, publicado em 1980, procurou definir com maior clareza
os aspectos essenciais em torno das atividades do professor alemão e de
seus alunos, organizando as informações já disponíveis e acrescentando tudo
aquilo que então foi possível localizar de inédito. Não era, contudo, uma
monografia dedicada exclusivamente ao pintor, e permaneceram sem solução
lacunas e antigas dúvidas.
Além das tradicionais dificuldades de pesquisa que
caracterizam nosso ambiente cultural, outros fatores adicionais ampliam os
obstáculos à investigação no caso de Johann Georg Grimm, inclusive a
circunstância de que o sul da Alemanha, berço do nazismo, foi submetido aos
mais severos bombardeios durante a II Guerra Mundial. Inúmeros arquivos se
perderam e famílias e memórias familiares se dispersaram. A única tentativa
que conheço de pesquisar Grimm na Alemanha aconteceu exatamente nos anos
imediatamente anteriores à guerra, promovida por estudiosos locais da
região dos alpes do Allgäu. Essa iniciativa pode ter estado de acordo com
as perspectivas do exacerbado nacionalismo alemão da época, de identificar
e louvar os atos da cultura germânica, mas deve-se muito mais, certamente,
ao simples e objetivo fato de que ainda existiam descendentes de Franz
Grimm, irmão do pintor Johann Georg, que guardavam documentos pessoais do
artista e cartas originais remanescentes da correspondência que eles
mantiveram entre 1872 e 1887. Havia também o compreensível orgulho de
divulgar em um ambiente de pequeninas cidades rurais a vida romântica e
aventureira de um conterrâneo que transpusera os estreitos limites
geográficos e existenciais de Immenstadt, Kempten, Neustiff, Wangen, Meran, etc.
Um artigo publicado em 1934, no jornal de uma associação
voltada para a preservação das tradições populares bávaras, revelou uma
série de cartas de Grimm para seu irmão, a maioria delas remetidas da
Itália e algumas do Brasil. Essas informações são muito valiosas, e dentre
elas surge a data completa do nascimento do artista. Porém, através delas
também podemos constatar que pelo menos uma questão importante continua sem
solução: onde se encontram as mais de 100 pinturas expostas por Grimm em
1882 no Rio de Janeiro? O pintor Antônio Parreiras, em suas memórias
publicadas em 1926, afirmou que após a morte de Grimm "...a pátria
recebeu a sua enorme bagagem artística", ou seja, que as pinturas
teriam voltado para a Alemanha; já os parentes do artista, quase uma década
depois, ainda imaginavam, conforme o artigo citado, que "...seus quadros
foram confiscados pelo governo brasileiro."!
De fato, conhecemos e temos acesso a no máximo cerca de 60
pinturas de Grimm, em geral obras exponenciais de sua produção no Brasil,
mas dentre as quais pouquíssimas são obras realizadas antes de 1879 ou na
Europa. Isso significa que é possível estimar a influência de Grimm sobre a
arte brasileira, o que felizmente tem sido feito, mas é muito difícil
analisar a influência do Brasil sobre a obra de Grimm. Se as dezenas de
pinturas que o artista produziu entre 1867 e 1879, na Europa, norte da
África e no Oriente Médio retornaram à Alemanha (hipótese negada nas
informações alemães de 1934), seu destino pode ter sido tão trágico quanto
o de Munique e de outras cidades da Baviera durante a guerra. Mas se
ficaram no Brasil (o que julgo muito pouco provável), como permanecem
ocultas por tanto tempo?
Sempre acreditei que essas pinturas estivessem em Palermo,
até porque supunha que Grimm teria seguido, já bastante doente, do Rio de
Janeiro direto para a Sicília. Mas a correspondência entre os irmãos
demonstra ter havido outra rota, do Brasil para a Alemanha e, já no estágio
final da tuberculose, da Alemanha para a Sicília. Assim, persiste o enigma
a ser desvendado. Se comportar uma solução positiva, com a localização das
pinturas em algum momento futuro, seremos todos beneficiados pela
possibilidade de examinar obras que impressionaram tremendamente nosso
ambiente artístico em 1882; se, por outro lado, permanecerem perdidas (com
a possibilidade de terem sido destruídas), jamais poderemos desfrutar dessa
atraente oportunidade.
Os enigmas são perturbadores como tudo aquilo que é
desconhecido, mas os enigmas insolúveis são tão superiores à nossa vontade
que ao menos com eles podemos coexistir em um certo grau de conformismo.
Bem mais difícil é se conformar com — ou até compreender, se tal fosse
possível — o total esquecimento e desinteresse por fatos que nada têm de
enigmáticos, como ocorre com o sesquicentenário de nascimento de Johann
Georg Grimm que deixa de ser comemorado neste ano de 1996.
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Originalmente publicado no JORNAL DA CRÍTICA, da Associação Brasileira
de Críticos de Arte,
número 1, dezembro de 1996, p.4
TEXTO:
Copyright © Carlos Roberto Maciel Levy, 1996-2020. Todos os direitos reservados.
IMAGEM:
Johann Georg Grimm (1846-1887), Estudo para o pano de boca da Casa da
Ópera de Sabará, circa 1885, coleção Sérgio Fadel, Rio de Janeiro RJ (reprodução)
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