Sexo, Hipocrisia e Tribunais
Três julgamentos morais separados por 24 séculos sugerem que nossa civilização
pode estar regredindo bastante. No século IV a.C. a bela e audaciosa
cortesã grega Frinéia foi julgada em Atenas por impiedade. Seu advogado,
orador brilhante, não precisou falar muito: despiu-a diante dos juízes e
Frinéia foi imediatamente absolvida. Os antigos gregos apreciavam beleza e
arte mais do que tudo, não eram muito dados a preconceitos sexuais ou
religiosos e talvez já estivessem bem acostumados a associar o corpo de
Frinéia, através das estátuas do grande escultor Praxíteles, à imagem da
deusa Afrodite.
Em pleno limiar do século XXI, o mais famoso clube de
imprensa do mundo, em Washington, EUA, resolveu julgar Frinéia novamente.
Dessa vez, representada pela magnífica tela que o artista brasileiro
Antônio Parreiras pintou em 1909. E que pintura! Se os nus de Parreiras
sempre se destacaram por forte sensualidade, por uma espécie de intensa
densidade erótica muito rara mesmo na pintura francesa do gênero, em
Frinéia tudo isso atingiu o clímax. Lá está na grande tela — nua, linda
e provocante — não apenas uma etérea deusa grega do amor e da beleza, mas
uma verdadeira mulher tremendamente desejável. E exatamente por isso, o
tribunal de jornalistas condenou-a sem hesitação: a pintura deve ser
expulsa da sede do National Press Club, ao qual pertence.
Um terceiro julgamento, bem recente e também em
Washington, não envolve Frinéia mas pode explicar porque sua imagem foi
tão barbaramente condenada pelo NPC. Bill Clinton, presidente dos EUA,
encurralado por "evidências materiais" confessou ter mantido "relações
impróprias" com Monica Lewinsky. No longo e grotesco espetáculo de
puritanismo, mentiras e oportunismo político que se arrasta há meses, o
infeliz Clinton jamais poderia ser absolvido despindo suas amantes diante
dos juízes. Nenhuma delas satisfaz aos exigentes padrões estéticos da
antigüidade grega, e mesmo que Lewinsky fosse uma espécie de Frinéia
contemporânea ainda assim Clinton e ela seriam inapelavelmente condenados,
pelo moralismo preconceituoso e medíocre, como aconteceu com a pintura de
Antônio Parreiras.
Os norte-americanos sempre gostaram de julgamentos
hipócritas e no passado costumavam perseguir bruxas e comunistas. Mas
parece que ultimamente, nos tempos neo-hipócritas do mercantilismo
triunfante, preferem perseguir imagens eróticas e atos sexuais. E nesse
caso, não cabe a menor dúvida: em matéria de sexo e tribunais, é bem melhor
ter sido prostituta na Grécia antiga do que ser presidente nos EUA de hoje.
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Originalmente publicado no JORNAL DA CRÍTICA, da Associação Brasileira
de Críticos de Arte, número 6, junho de 1999, p.12
NOTA
A absurda situação comentada neste texto teve o melhor final
possível: Frinéia foi comprada de seus toscos
proprietários norte-americanos e retornou em definitivo ao
Brasil no ano de 2006.
TEXTO:
Copyright © Carlos Roberto Maciel Levy, 1999-2020. Todos os direitos
reservados.
IMAGEM:
ANTÔNIO PARREIRAS (1860-1937), Frinéia, 1909, coleção particular, Rio de Janeiro RJ
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