Carlos Roberto Maciel Levy |
Crítico e Historiador de arte |
Encobrindo o Brasil Brasil redescoberto. Um conceito frágil e instável, para não dizer um tanto suspeito, como diretriz ao examinar arte e história de um país que muitos infelizmente ainda acreditam ter sido descoberto há 500 anos.[1] No que me diz respeito, não acho que tenha sido descoberto e muito menos redescoberto. Mas isso é mesmo questão de ideologia — e de consciência — e não se pode esperar que, no tenebroso presente de alienação que vivemos, muitos reconheçam espontaneamente que o Brasil foi simplesmente inventado pelos portugueses e brasileiros, e reinventado por esses últimos a cada dia desde então. O programa explícito da extensa exposição apresentada no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, é o de propor "...leituras contemporâneas sobre alguns dos diversos olhares para o Brasil do século XIX", para isso segmentando seu objeto em sete módulos independentes. Embora seu curador geral, o gravador Carlos Martins, afirme na introdução publicada no catálogo que a mostra "...não pretende ser uma visão totalizante ou completa do século XIX no Brasil", isso soando como uma cautelosa escusa para a estrutura adotada — não se pode negar que é indefensável a visão arbitrária, superficial e fragmentada que produziu a exposição. Há alguns pontos essenciais para analisá-la, mas o mais importante deles está na curiosa contradição estabelecida por um dos dois textos especiais contidos no próprio catálogo, texto esse cujo autor não fez parte da curadoria. Falo — mirabili dictu — do ensaio Como estudar a arte brasileira do século XIX (p.124-131), do crítico e historiador de arte Jorge Coli, amigo e discípulo do saudoso professor Alexandre Eulálio, de quem muito faz recordar os notáveis predicados de argúcia e sensibilidade para compreender a pintura brasileira do oitocentos. Tal é a dimensão da importância desse texto, que sou forçado a dele tomar apenas, para referência, uma constatação simplificada: só é possível aproximar-se de nossa arte do século passado, para interpretá-la, através do exame direto das próprias obras, do estudo profundo e criterioso dos atributos artísticos de um época cuja densidade e sutileza nada podem ter em comum com os estereótipos da visão contemporânea que é antes de mais nada produto acabado de nossa época de massificação e consumo. Aliás, não surpreende que o curador geral da mostra apresente o texto de Jorge Coli, na introdução, como "...uma proposta para a compreensão da pintura acadêmica no Brasil", que é exatamente o que ele não é, pois, muitíssimo mais do que uma proposta, o ensaio enuncia de modo magistral o primarismo preconceituoso, incompetente e ... acadêmico, de associar como razão absoluta "pintura acadêmica" e "século XIX" em nossa história da arte E justamente esse enunciado — impecável em sua serena e generosa solidez — é sistematicamente violentado na concepção de O Brasil redescoberto. Como admitir que sejam reunidas mais de quinhentas [2] obras exponenciais em nossa arte do século XIX, muitas delas excepcionais pinturas que permaneciam inéditas por terem sido alienadas de nosso patrimônio para o exterior há muitos anos, sob a égide de uma concepção estrutural pré-fabricada de história e estética? Sem nenhum prazer reconheço e assumo a extrema severidade de identificar o modus operandi da organização da mostra com um fenômeno típico do presente: a atração fatal pela facilidade das generalizações especulativas, sobretudo as teóricas, numa espécie de verdadeira alucinação heurística. Algo como o modo de produção dos meios de comunicação, primo inter pares a imprensa, que de tudo pretende poder aproximar-se sob uma hipotética aura de homogeneidade reveladora. Nesse universo de fantasia tudo é possível porque nada mantém compromissos com o que quer que seja, senão com a concretização de missões objetivas e imediatas: nos jornais e revistas, noticiar aquilo que amanhã estará esquecido, seja nascimento ou morte, trivial ou conspícuo, música ou culinária, arte ou crime; na exposição comentada, elaborar uma construção a la carte para todo um período extraordinariamente complexo de arte e história no Brasil, esquartejando-o e recompondo-o ao sabor das inspirações ocasionais da formação inter/extra/multidisciplinar dos curadores responsáveis pelos diversos segmentos. Falemos então desses segmentos. O primeiro, Mundo de incógnitas grandezas, creio que se revela de imediato em sua constituição: duas pinturas e duas litografias (aves, animais e alegorias), dez aves e animais empalhados (macacos, onça, tatu, arara, papagaio, etc.) e três modelos de navios. Não está embasado por um texto específico no catálogo, como acontece com os demais, mas transcreve sete curtos parágrafos ou fragmentos de parágrafos, extraídos da carta de Pero Vaz de Caminha; do livro Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda; de uma carta régia do príncipe regente Dom João em 1808; e de Spix e Martius em Viagem pelo Brasil 1817-1820. É, por conseguinte, um impenetrável exercício de adivinhação, uma ode ao enigma, uma singela proposição metacrítica e criativa — para a qual pelo menos eu estou despreparado — ou então uma genial parábola metafórica que define como era ou como foi visto o Brasil em sua origem antes da "descoberta". Nada mal para um intervalo de quatrocentos anos entre os séculos XVI e XIX, sobre os quais mesmo hoje quase nada conhecemos e há bem pouco tempo vem sendo estudado com método e integridade. O segundo segmento, Os três reinos da natureza, é sem qualquer dúvida um dos melhores da exposição e corresponde a um nítido, legítimo e bem sucedido propósito de investigação intelectual associado à iconografia (situação que compartilha com o sétimo e último segmento, como se verá mais adiante). Dentre os 178 itens selecionados pelas curadoras Lorelai Kury e Magali Romero Sá, encontramos gravuras e litografias de diversos autores que serviram de ilustração aos estudos dos naturalistas Hermann Burmeister (1807-1892), Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), Johann Chistian Mikán (1769-1844), Johann Emmanuel Pohl (1782-1834) e Auguste de Saint-Hillaire (1779-1853); aquarelas de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), José dos Reis Carvalho (1800-18??) e Franz Keller-Leuzinger (1835-1890); litografias de Maximilien Wied-Neuwied (1782-1867) e de Johann Moritz Rugendas (1802-1858); além de exemplares de coleções científicas de sementes, coleópteros, invertebrados, moluscos e mineralogia que pertenceram a Dom Pedro II e a Dona Leopoldina e hoje integram o acervo do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista. Abordando a enorme atração despertada pelo país no âmbito das ciências naturais, após a abertura dos portos — o que significa também discorrer sobre o primado da observação científica na primeira metade do século XIX como fenômeno singular —, esta seção da mostra é por si só uma exposição cuja relevância, consistência e clareza deveriam ter servido de modelo para todo o projeto. O terceiro e o quarto segmentos, As três raças do império e Debret e a corte no Brasil, reúnem 173 pinturas (em especial aquarelas), gravuras e litografias, 111 das quais de um único artista, Jean-Baptiste Debret. Se para aqueles interessados pelo universo da pintura e da iconografia a seleção proporciona um tão raro quanto gratificante encontro com larga parte da produção desse artista francês a quem tanto devemos, por outro lado ressurgem a contradição e a arbitrariedade que vão se tornando marcas inconfundíveis da exposição: ambos os textos assinados pelos curadores, no catálogo, muito se assemelham na aparente vontade de utilizar as imagens escolhidas como simples e indefesos álibis para as teses, concepções e afirmativas que eles, curadores, desejam formular e ilustrar. E ao fazê-lo, praticam algo como uma semiologia às avessas, processo cuja origem é bem um fruto desta segunda metade do século XX, quando em perfeita sincronia foi desenvolvida aquela aberração que Tom Wolfe chamou de "palavra pintada", referindo-se ao apologistas intelectuais do expressionismo abstrato norte-americano do segundo pós-guerra. Desconfio que tal visão, no caso presente, decorre da real carência de familiaridade com as obras de arte e com tudo aquilo que lhes é intrínseco, seja em termos de atributos artísticos imediatos — tais como desenho, perspectiva, proporções e valores — ou de correlação cultural e estética, muito especialmente no plano da história da arte. E talvez esse seja um mal de nosso tempo, uma espécie de conseqüência inevitável da ânsia globalizante de saber formal que é engendrada pelo modelos de educação e aperfeiçoamento universitário: e a esse propósito e em semelhante contexto, lembro-me agora de como até as límpidas aquarelas de Winslow Homer tornaram-se pretexto, em um dos textos [3] no catálogo de sua grande retrospectiva apresentada pelo Metropolitan Museum em 1996, para especulações político-sexuais elaboradas a partir da misoginia do artista, convenientemente enredada pelas imagens de pescadores negros das Antilhas e mandíbulas escancaradas de tubarões que aparecem em algumas de suas obras. O quinto segmento, Coleção Brasiliana, não sofre dos mesmos defeitos; pelo contrário, seu conteúdo é inteiramente espontâneo e não pretende defender nenhuma tese ou programa alheio à natureza das obras de arte que apresenta, o mesmo valendo para o equilibrado e bem construído texto de seu curador, o onipresente Carlos Martins (responsável também pelo primeiro segmento e, como já se disse, pela curadoria geral). As 131 pinturas, desenhos, gravuras e litografias que compõem a coleção (veja-se a nota 2) são todas inéditas e de significativa relevância em relação a nosso patrimônio histórico e artístico. Há obras definitivamente exponenciais, como as duas soberbas naturezas-mortas de Agostinho José da Mota (1824-1878); uma grande vista da baía do Rio de Janeiro, de Alessandro Cicarelli (1811-1879); duas notáveis paisagens de Henri Nicolas Vinet (1817-1876); nove pinturas e desenhos de Nicolau Facchinetti (1824-1900); duas surpreendentes pinturas de Karl Ernst Papf (1833-1910), que muito acrescentarão ao estudo da obra paisagística do artista; nada menos de quatro pinturas de Joseph Leone Righini (1830-1884) [4]; e ainda obras, dentre outros, de François Auguste Biard (1798-1882), Friedrich Hagedorn (1814-1889), Eduard Hildebrandt (1818-1869) e Bernard Wiegandt (1851-1918). Sendo coleção de origem particular, e correspondendo por conseguinte à percepção e ao gosto do colecionador, ainda assim possui como elementos de indiscutível unidade a concentração na iconografia brasileira do oitocentos e o interesse pela paisagem. A isso podemos constatar que se soma uma certa propriedade muito específica em relação aos artistas representados e à qualidade de suas obras, pois o colecionador as recolheu dentre aquelas que estavam disponíveis na Europa, vale dizer, aquelas que deixaram o Brasil sob o signo da eleição de seus proprietários originais, provavelmente em período contemporâneo à sua própria execução. E essa sim, pode talvez ser admitida como a verdadeira visão do estrangeiro sobre nossa arte do século XIX e sobre o que ela representou em suas imagens. No sexto segmento, Redescobrir o Rio de Janeiro, encontramos a parte mais problemática da exposição, na qual tentativas de descoberta e redescoberta são aplicadas com insistência à imagens da cidade que em dois trechos do catálogo é apontada como, "...depois de Paris, a cidade mais retratada no século XIX". Pois creio que é bem possível que o Rio de Janeiro tenha sido muito mais representado, em pinturas, desenhos e gravuras do oitocentos, do que a capital francesa, e isso em menos de cem anos. Basta considerar o quinto segmento da própria exposição, que da cidade introduz tantas vistas cuja existência até então desconhecíamos por estarem desde talvez há um século ... em Paris. Isso é sugestivo, pois bem raras são as vistas de Paris que existem ou existiram no Rio de Janeiro; mas tais hipóteses não são realmente importantes, a não ser pelo fato de sublinharem a imensa responsabilidade de selecionar obras e escrever sobre o assunto, campo privilegiado que foi da atenção de estudiosos do porte de Francisco Marques dos Santos e Gilberto Ferrez, e de outros tantos igualmente ilustres antes deles. Uma paupérrima seleção [5] de obras motiva um texto que oscila entre pura literatura e a artificialidade de conceitos e apreciações totalmente dissociadas das obras de arte a que se referem. As mesmas características presentes nos segmentos três e quatro repetem-se e radicalizam-se ao extremo nesse segmento. Há formulações ao mesmo tempo equivocadas e fantasiosas, como por exemplo: "Convencional e eminentemente burguesa, a pintura desses viajantes oitocentistas vivia da tentação, irrealizável, de maestria da visualidade e da própria experiência do olhar. Não estamos apenas diante de regras pictóricas, mas também de uma série de convenções sensíveis, que transformava o mundo num repertório de sentimentos, experiências e sensações, capazes de apaziguar a vivência erótica desse pulsão". E também trechos no mínimo dignos de redações escolares: em relação "...aos artistas viajantes que chegam ao Rio em meados do século XIX" afirma-se que "...aqui os artistas mais avançados precisavam trabalhar nos limites estreitos de uma Academia recém-criada, cuja fundação, paradoxalmente, não contava com qualquer sorte de fundamento." A análise de algumas das pinturas é atroz e submete-as impiedosamente a um leito de Procusto intelectual, como em relação a obras de Debret, do "...artista acadêmico Augusto Rodrigues Duarte" e de Henri Nicolas Vinet. Sobre este parece existir a mais absoluta certeza de que tenha sido aluno de Jean-Baptiste Camille Corot, não obstante disso não exista em nossa história da arte qualquer evidência documental: e o pobre Vinet, que viveu no Brasil durante vinte anos até sua morte, e cuja produção é para nós de enorme significado, em quatro parágrafos é tratado como se nada mais tivesse sido do que um mero satélite do grande paisagista francês. E isso através de bizarras impropriedades, tais como a de afirmar que de Corot teria herdado a "...maneira de definir um espaço pictórico unitário através da constituição de um primeiro plano árido e vazio". O sétimo segmento, O panorama no Brasil, sob a curadoria de Anna Maria Monteiro de Carvalho, em 47 obras selecionadas e um texto seguro e ponderado examina — com interesse, isenção e propriedade — a gênese e as peculiaridades da pintura de panoramas em nossa arte do período. Novamente o visitante, caso consiga superar a opressiva hostilidade que emana da confusa concepção do conjunto da mostra e de sua montagem, poderá ver e rever excelentes pinturas de Henry Chamberlain (1796-1844), August Müller (1815-circa 1883), Emil Bauch (1823-circa 1890), Nicolau Facchinetti e, especialmente, os estudos para o célebre panorama do Rio de Janeiro de Vítor Meireles de Lima (1832-1803); além de litografias e gravuras de Johann Jacob Steinmann (1800-1844), Karl Robert von Planitz (1806-1847), Guilherme Briggs (1813-1870) e outros. Esse segmento compartilha com o segundo qualidades e méritos essenciais na abordagem dos temas que se propõe analisar, como já foi dito, seja na seleção das obras como na objetiva e esclarecedora relação que esta mantém com o texto publicado no catálogo. Resta falar de Os artistas viajantes, a paisagem e representações do Brasil, o segundo texto especial contido no catálogo. Suponho que a autora, Ms. Dawn Ades, seja inglesa, isso pela prolífica citação de autores e artistas britânicos, das pitorescas teorias de William Gilpin [6] às pinturas e opiniões amadoras do diplomata William Gore Ouseley (1797-1866), sem esquecer Lady Calcott, nossa conhecida Maria Graham, que pela primeira vez vejo mencionada como fonte séria de reflexão para assuntos específicos de arte e pintura no Brasil. A inclusão desse texto — que segundo a lógica particular da exposição possuiria o mesmo estatuto do ensaio de Jorge Coli, ambos externos às responsabilidades de curadoria — é muitíssimo embaraçosa. Qual a razão de recorrer a um autor estrangeiro, que por suas palavras demonstra inequívoca escassez de contato direto com o tema brasileiro que escolheu ou lhe foi atribuído? Fortes motivos para isso seriam indispensáveis, notadamente quando — salvo traições da tradução — o que se obteve limita-se a divagações genéricas e inconclusivas. Ms. Ades adeja por terrenos tão vagos e brumosos quanto a atmosfera londrina, referindo-se com insistência ao conceito filosófico do "sublime", tão caro ao paisagismo norte-americano de antes da Guerra Civil e tão distante de nossa realidade católica e tropical; mencionando discutíveis categorias instrumentais como a de "paisagem topográfica", engendrada nos porões dos sagazes leiloeiros da Sotheby’s e da Christie’s; produzindo explicações frias, mecânicas e artificiais para o tipo de composição paisagística mais freqüente em Rugendas e Debret, em suas vistas do interior das florestas brasileiras, às quais adiciona banalidades como especular sobre a suposta originalidade da composição vertical em Rugendas, para "...enfatizar a altura das árvores". Além de um constrangedor elenco de afirmativas pueris do gênero "...a cachoeira de Paulo Afonso já era um ponto turístico bastante conhecido em meados do século [XIX]" e "...visões distantes de montanhas, florestas e vales têm muito em comum, não importa onde se localizem". *** Em resumo, como é possivel conseguir reunir um magnífico conjunto de obras de arte, em um edifício histórico de notáveis características arquitetônicas e imponente presença simbólica, em torno de um tema de ilimitada riqueza, e ainda assim produzir uma exposição cujo conjunto é muito confuso e deficiente? Há para isso respostas baseadas em situações simples e situações complexas. Das segundas procurei traçar um rápido esboço nos parágrafos precedentes; das primeiras, diversas encontram-se no plano das questões técnicas, desde o temerário e inexplicável excesso de itens apresentados [7] até a iluminação insuficiente, adequada para a preservação das frágeis obras em papel mas péssima para as pinturas a óleo e sobre tela. O mesmo se aplica a questões elementares de planejamento de montagem, porque pinturas enormes foram dispostas em espaços exíguos e obras de reduzido formato foram acumuladas em espaços amplos, assim produzindo ambientes que desfavorecem tanto o material apresentado quanto impõem desconforto aos visitantes; como também se aplica à própria identificação de autores e obras, que na melhor tradição de nossos museus se esmera em ignorar anatomia e ergonomia e parece idolatrar os formatos minimalistas e as tipologia liliputianas — com isso aniquilando qualquer possibilidade de difundir informação e produzir conhecimento para o público não especializado, que em última análise é o destinatário principal e a maior razão para justificar os enormes riscos e despesas que as grandes exposições exigem. [8] Enfim, é uma pena que as seis exposições — sobretudo, é claro, o segundo, o quinto e o sétimo segmentos — não tivessem sido equacionadas como mostras independentes e apresentadas isoladamente. Estou certo que essa teria sido uma solução eficaz sob todos os aspectos, para grande proveito dos visitantes e das imagens de um século cujo significado primordial foi tão bem definido por Quirino Campofiorito. [9] Assim, aqueles segmentos deficientes teriam de assumir com clareza suas deficiências (e então talvez não as tivessem tido), sem prejudicar pela contradição e pela redundância os demais; e as melhores seleções teriam sido desoneradas da imposição de um conjunto arbitrário e desigual, podendo comunicar com maior fluência suas qualidades — bem em sintonia com o sentido de integridade e respeito amoroso preconizado por Jorge Coli em seu ensaio citado, que desde já, não tenho dúvida, é a mais significativa e perene contribuição que a mostra faz à nossa cultura e ao estudo da história da arte no Brasil. Bem à maneira dos críticos brasileiros do século XIX, faltando-me porém o conhecimento de um Porto-Alegre, a sensatez de um Félix Ferreira, a energia de um Angelo Agostini, e mais do que tudo a elegância de um Gonzaga Duque, permitam-me os senhores curadores pedir-lhes que não tomem a nuvem por Juno e que por conseguinte não me queiram mal por minhas palavras. Sou um admirador confesso e muitíssimo apaixonado pela arte brasileira desse período no qual pretendem Vossas Senhorias ter sido o Brasil redescoberto. Pois acontece que eu acho — como já disse no início — que não fomos descobertos nem redescobertos; inventados e reinventados talvez (e alguns dentre Vossas Senhorias bem que admitem isso, embora por razões que se encontram em oposição dialética às minhas); e mais certamente fomos — eis que agora posso dizê-lo, com orgulho e esperança — capazes de identificar através de nossa arte e de nossos artistas as singularidades próprias que nos fazem como somos, e isso conseguimos em época e ambiente de franco e perigoso antagonismo durante a era das revoluções, do capital e dos impérios, enfim em um século tão longo que se estendeu da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial, conforme bem estudado e compreendido por Eric Hobsbawn. E mencionando ainda esse grande historiador e humanista, digo que tendo eu nascido em meados desse breve século XX que morreu há apenas dez anos, fui frustrado na expectativa de nele poder ver ampliar-se e aprimorar-se aquilo que em matéria de arte e identidade cultural se conquistara no passado. E como persisto em acreditar que não é inevitável que isso tenha de se repetir ao longo desse jovem século XXI cujos primeiros anos já vivemos, mesmo encontrando-nos o Brasil e os brasileiros mais abaixo do que jamais estivemos do século XVI ao XVIII, vejo cada vez maior sentido e urgência em procurar refletir melhor sobre a época que em nossa história foi uma proveitosa mistura do que mais se aproxima do Renascimento e do Iluminismo europeus — o que pode explicar tanta e tão rigorosa exigência nesse comentário sobre a exposição da qual Vossas Senhorias foram curadores. NOTAS 1. E que por essa lógica de perversa sujeição bem estaria sendo re-redescoberto agora, quando é invadido pela ficção do neoliberalismo globalizante, reles neocolonialismo pós-moderno que insiste em nos privar de identidade cultural — in the old fashion way — para com maior conveniência e conforto nos despojar de todos os valores. Digo agora, não obstante tal processo no plano internacional seja já antigo de pelo menos uma década, porque entre nós seus sucessos mais significativos têm ocorrido nos últimos três anos e sobretudo em 1999. 2. Nesse número não estão incluídos espécimes de fauna e flora, fotografias, documentos e objetos diversos, que elevam a quantidade total a 600 ou mais itens. No que se refere à propriedade das pinturas e obras de iconografia na exposição, mais de um terço do conjunto (36%) foi selecionado do acervo dos Museus Castro Maia, dos quais foi diretor o curador geral Carlos Martins, a quem portanto devemos a inusual oportunidade de apreciar a inigualável coleção de aquarelas e desenhos de Jean-Baptiste Debret, em geral tão inacessível; e exatamente outros 25% do conjunto são constituídos pela coleção particular da Fundação Rank-Packard / Estudar, designada como Coleção Brasiliana, que trouxe de volta ao país pinturas de notáveis qualidade e raridade, reunidas na Europa e mantidas em Paris entre 1945 e 1985 pelo comerciante de antiguidades Jacques Kugel. 3. O catálogo a que me refiro está na sala bem ao lado de onde escrevo agora; perdoem-me se não me animo a ir buscá-lo para identificar apropriadamente fonte e autor. Não creio que valha à pena. 4. Uma dessas intoleráveis injustiças da existência por uns poucos anos privou nosso colega Donato Melo Júnior, de saudosa memória, da oportunidade que por direito lhe caberia de alegrar-se com essas esplêndidas paisagens de um artista que tanto e por tantos anos ocupou sua atenção de pesquisador meticuloso. 5. Sessenta e cinco desenhos e gravuras do conde de Clarac (1777-1847), tenente Henry Chamberlain e Johann Moritz Rugendas; pinturas de Nicolas Antoine Taunay (1755-1830), Thomas Ender (1793-1875), Raymond-Auguste Quinsac de Monvoisin (1794-1870), Henri Nicolas Vinet e Jean-Baptiste Debret; este, com o maior número de obras, torna-se em definitivo o principal homenageado da mostra e ao mesmo tempo aquele que é a todo instante vitimado por injúrias, calúnias e difamações. 6. Há mais de meio século, por volta dos anos 1940, Willem Sandberg e outros especialistas que revolucionaram os museus europeus já proclamavam o óbvio, sobre a impossibilidade de estabelecer efetiva comunicação sensorial e intelectual com mais do que uma ou no máximo duas centenas de obras de arte simultaneamente. 7. Que motiva o desperdício injustificável de ter incluídas no catálogo duas reproduções de péssima qualidade, tanto em termos gráficos como artísticos, dentre as que ilustram seu livro Three essays on picturesque beauty, publicado em Londres em fins do século XVIII. 8. A mostra O Brasil redescoberto, apresentada durante os meses de setembro a novembro de 1999, foi produzida pelo Paço Imperial e pelos Museus Castro Maia, ambas instituições culturais do governo federal, com patrocínio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BNDES e apoio de empresas privadas como Telemar e Varig. Para ela foi publicado um belo catálogo de 184 páginas, com cerca de 150 reproduções em policromia (preço eqüivalente a US$ 20). 9. "O século XIX apresenta à História da Arte no Brasil o sério desafio de ter sido a época decisiva para a transformação de nossa cultura nacional. Tudo o que, até o advento republicano, pôde condicionar a inteligência brasileira para receber e reassimilar as influências internacionais, aconteceu nesses primeiros anos de nossa história independente". História da Pintura Brasileira no Século XIX, 1983.
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Originalmente publicado no JORNAL DA CRÍTICA, da
Associação Brasileira de Críticos de Arte, número 7, novembro de 1999, p.3-5
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