Veja nos Museus: Aurélio de Figueiredo
A CRÍTICA DE FÉLIX FERREIRA EM 1885
"Do meio desse grupo de produções, que em geral revelam
talentos e vocação, sobreleva-se a obra capital, a tela de Francesca da
Rimini. É conhecida a triste história que inspirou a Dante os belos versos
de um dos mais conhecidos episódios da sua Divina Comédia: Francesca da
Rimini, filha do Duque de Polenta, é dada por seu pai em casamento a
Lanciotto Malatesta, que era disforme e feio; o irmão, Paolo, que, ao
contrário, era elegante e gentil, seduz a cunhada, e um dia, que ambos em
amoroso colóquio interrompiam a leitura de um livro para se beijarem,
surpreendidos pelo enganado esposo, perecem vítimas de tão justo furor. É
no inferno que o poeta florentino vai encontrar a adúltera ao lado do
amante, é daí que nos conta ele o trágico sucesso, que tem fornecido
assunto a mais de um pintor moderno, entre os quais sobressaem Ingres,
Scheffer, Cabanel e o insígne pintor escocês Dyce.
O quadro de Ingres, que se admira no Museu de Angers,
representa o momento em que os amantes são surpreendidos por Lanciotto; o
de Scheffer, que goza de mais popularidade, reproduz o encontro das almas
dos amantes com Dante e Virgílio nas regiões infernais; o de Cabanel, que é
o mais moderno, e menos notável dos três, apresenta Paolo e Francesca
expirando e confundindo em um último olhar o derradeiro enlevo do criminoso
amor; o de Dyce segue em parte a descrição da Divina Comédia; como desenho
é considerado uma obra-prima, como colorido tem um tom de melancolia que
entristece o quadro.
O Sr. Aurélio de Figueiredo pôs de lado Dante e foi pedir
ao moderno poeta Silvio Pellico inspiração menos lúgubre, ainda que também
menos verdadeira, ou natural, reproduzindo o primeiro encontro dos amantes,
ou, para melhor, o dia em que Paolo, conforme a sua narrativa da cena
segunda do terceiro ato da tragédia, diz ter visto pela primeira vez
Francesca, '...atravessando um adro, acompanhada das damas, parar junto
a uma nova sepultura e, aí prosternada, levantar mudamente as mãos aos
céus'.
O nosso artista modificou esta narrativa, a qual posto
seja um tanto forçada, pois não é crível que Paolo se apaixonasse da filha
de Polenta quando ela era ainda livre, sem tentar ser preferido ao irmão; e
que essa paixão nascesse de um encontro em tão triste circunstância, como
nos descreve Silvio Pellico em sua tragédia. É verdade que também
Shakespeare fez quase o mesmo, incendendo veemente paixão em Julieta e
Romeu, no momento em que também pela primeira vez se encontraram em uma
igreja. A modificação do Sr. Aurélio de Figueiredo prejudica ainda mais a
naturalidade; pois, pela disposição dos personagens, Francesca dá as costas
ao grupo dos contempladores. É isto o que se pensa diante do quadro, mas
essa não parece ser a idéia do artista, mas sim ter Paolo seguido
Francesca, arrastado pela sua peregrina formosura, até que, vendo-a
recolhida a tão piedoso devaneio, pára estático a contemplá-la, cheio de
enlevo.
Afastando-se do poeta o nosso artista, em vez do cortejo
feral colocou só uma dama de joelhos junto ao supedâneo; Francesca não
prosterna-se, mas inclina-se sobre a parte superior do monumento; não
levanta as mãos ao céu banhada em pranto; essa posição seria mais
acadêmica, porém as lágrimas prejudicariam por certo a beleza olímpica da
filha de Ravena. A atitude da princesa não revela estudo de quem se
suspeita admirada. Guiada pela dor e pela saudade, dirigiu-se ao túmulo
materno, debruçou-se sobre a pedra insensível e fria, e, presa de um
devaneio funéreo, magoada, parece ouvir a voz querida que lhe fala de
regiões desconhecidas. Há no seu olhar como que um enlevo por uma visão que
só ela vê e entende. A cabeça como que está voltada para o lado donde vem
essa voz misteriosa e consoladora.
A figura de Francesca é bonita, imponente mesmo. O vestido
de veludo negro rola a cauda pelos degraus de mármore escuro. A cabeça é
bem talhada, e a opulenta cabeleira loura desce em duas tranças bastas e
longas, que, eriçadas ao contato do veludo, esvoaçam fios sutis do cabelo,
como se fossem de ouro puro. A epiderme da face, alva e macia, com uma
tenuíssima coloração carmínea, põe em relevo uns olhos de uma nesga do céu
em manhã de primavera. Tudo nela respira isenção e pureza; é a virgem, por
cujo espírito ainda não adejaram imagens apaixonadas; sonhos febricitantes
ainda não agitaram aqueles nervos de menina. Só a dor da órfã absorve
aquele coração, nítido como as páginas de um livro em branco. Não obstante
todas essas belezas nota-se que a figura é demasiadamente alta; comparada
com a dama que tem ao lado, é de exagerada estatura.
A poucos passos está aquele que deve um dia amá-la
criminosamente e perdê-la, perdendo-se com ela, Paolo Malatesta, rodeado do
seu cortejo, contempla Francesca, não cheio de espanto e agitado como
Romeu, quando pela primeira vez vê Julieta, mas enlevado e pasmo, como um
amador que admira uma obra de arte. A sua posição não nos parece natural;
creio mesmo que desmente um pouco as leis do equilíbrio, pois descai o
corpo para o lado contrário do ponto de apoio. O desenho da figura porém é
elegante e o colorido cuidado. A cabeça, coberta com um gorro de seda, de
corte gentil, é muito graciosa. O velho que está ao lado traduz melhor a
admiração de que se acha possuído, e a sua figura forma um bom pendant com
a de Paolo. O pagenzinho que conduz a espada, posto não agrade tanto como
as outras figuras, interrompe contudo a monotonia que existiria, se em seu
lugar estivesse outro homem.
O fundo da tela é de bom efeito; a entrada do adro e o
pórtico arcado que lhe fica à esquerda, reproduzindo da arquitetura medieva
seus cortes retos e formas geométricas, simboliza a rudeza e prepotência
dos tempos feudais; aqui porém, mais que em qualquer outro ponto do quadro,
é que o artista transgrediu as regras da perspectiva por tal modo, que vai
além de simples descuido. Francesca da Rimini é um trabalho que faz honra
ao moço artista, mesmo com os senões que os mais exigentes lhe têm notado".
A CRÍTICA DE LUIZ GONZAGA DUQUE ESTRADA EM 1888
"Como obra de valor pela composição, entre todas que Aurélio
tem produzido, acha-se em primeiro lugar o Encontro de Paolo e Francesca
da Rimini, em que estão observadas, com vivo interesse, todas as leis
da unidade e da variedade. A tela inteira é de um brio magistral. A fisionomia
de Francesca, orando, tem uma fineza esquisita, uma inarrável expressão de
crença e de devotamento. A pele é fresca, láctea e ruborizada; um pouco
transparente. Ajoelhada sobre o pedestal do mausoléu dos seus antepassados,
toda vestida de preto, reza com fervor, apoiando os cotovelos sobre o túmulo,
as mãos erguidas, os olhos azuis levantados para o céu. Do alto da cabeça
redonda pendem duas serpentes de ouro que repousam voluptuosamente sobre as
suas espáduas envolvidas no veludo negro do vestido, cuja cauda, numa grande
curva doce, como o lombo recurvo de um urso preto, descansa em cima do primeiro
degrau de mármore. A aia acompanha-a neste momento. Ajoelhada perto do túmulo, de
costas para a frente do quadro, passa os olhos pelo livro de orações. Junto
dela arde o incenso em uma cacholeta de bronze. Ao fundo, no pátio do
castelo dos senhores de Ravena, está Paolo, em pé, em posição
contemplativa, cercado de homens d'armas. Na frente dessa pequena turba,
menos de uma corja, um pagenzinho, encantadoramente belo, porém afetado na
atitude, vem trazer à senhora a espada do cunhado que a contempla,
enamorado e mudo".
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FRANCISCO AURÉLIO DE FIGUEIREDO E MELO (1856-1916)
Francesca da Rimini, 1883, óleo sobre tela, 272,0 x 206,0 cm
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro RJ
TEXTOS:
FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações, Rio de Janeiro,
Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885, p.142-147 •
ESTRADA, Luiz Gonzaga Duque. A Arte Brasileira: Pintura e Escultura,
Rio de Janeiro, H. Lombaerts Editor, 1888, p.165-166.
IMAGEM:
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