Carlos Roberto Maciel Levy

Crítico e Historiador de arte

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Veja nos Museus: Aurélio de Figueiredo

A CRÍTICA DE FÉLIX FERREIRA EM 1885

"Do meio desse grupo de produções, que em geral revelam talentos e vocação, sobreleva-se a obra capital, a tela de Francesca da Rimini. É conhecida a triste história que inspirou a Dante os belos versos de um dos mais conhecidos episódios da sua Divina Comédia: Francesca da Rimini, filha do Duque de Polenta, é dada por seu pai em casamento a Lanciotto Malatesta, que era disforme e feio; o irmão, Paolo, que, ao contrário, era elegante e gentil, seduz a cunhada, e um dia, que ambos em amoroso colóquio interrompiam a leitura de um livro para se beijarem, surpreendidos pelo enganado esposo, perecem vítimas de tão justo furor. É no inferno que o poeta florentino vai encontrar a adúltera ao lado do amante, é daí que nos conta ele o trágico sucesso, que tem fornecido assunto a mais de um pintor moderno, entre os quais sobressaem Ingres, Scheffer, Cabanel e o insígne pintor escocês Dyce.

O quadro de Ingres, que se admira no Museu de Angers, representa o momento em que os amantes são surpreendidos por Lanciotto; o de Scheffer, que goza de mais popularidade, reproduz o encontro das almas dos amantes com Dante e Virgílio nas regiões infernais; o de Cabanel, que é o mais moderno, e menos notável dos três, apresenta Paolo e Francesca expirando e confundindo em um último olhar o derradeiro enlevo do criminoso amor; o de Dyce segue em parte a descrição da Divina Comédia; como desenho é considerado uma obra-prima, como colorido tem um tom de melancolia que entristece o quadro.

O Sr. Aurélio de Figueiredo pôs de lado Dante e foi pedir ao moderno poeta Silvio Pellico inspiração menos lúgubre, ainda que também menos verdadeira, ou natural, reproduzindo o primeiro encontro dos amantes, ou, para melhor, o dia em que Paolo, conforme a sua narrativa da cena segunda do terceiro ato da tragédia, diz ter visto pela primeira vez Francesca, '...atravessando um adro, acompanhada das damas, parar junto a uma nova sepultura e, aí prosternada, levantar mudamente as mãos aos céus'.

O nosso artista modificou esta narrativa, a qual posto seja um tanto forçada, pois não é crível que Paolo se apaixonasse da filha de Polenta quando ela era ainda livre, sem tentar ser preferido ao irmão; e que essa paixão nascesse de um encontro em tão triste circunstância, como nos descreve Silvio Pellico em sua tragédia. É verdade que também Shakespeare fez quase o mesmo, incendendo veemente paixão em Julieta e Romeu, no momento em que também pela primeira vez se encontraram em uma igreja. A modificação do Sr. Aurélio de Figueiredo prejudica ainda mais a naturalidade; pois, pela disposição dos personagens, Francesca dá as costas ao grupo dos contempladores. É isto o que se pensa diante do quadro, mas essa não parece ser a idéia do artista, mas sim ter Paolo seguido Francesca, arrastado pela sua peregrina formosura, até que, vendo-a recolhida a tão piedoso devaneio, pára estático a contemplá-la, cheio de enlevo.

Afastando-se do poeta o nosso artista, em vez do cortejo feral colocou só uma dama de joelhos junto ao supedâneo; Francesca não prosterna-se, mas inclina-se sobre a parte superior do monumento; não levanta as mãos ao céu banhada em pranto; essa posição seria mais acadêmica, porém as lágrimas prejudicariam por certo a beleza olímpica da filha de Ravena. A atitude da princesa não revela estudo de quem se suspeita admirada. Guiada pela dor e pela saudade, dirigiu-se ao túmulo materno, debruçou-se sobre a pedra insensível e fria, e, presa de um devaneio funéreo, magoada, parece ouvir a voz querida que lhe fala de regiões desconhecidas. Há no seu olhar como que um enlevo por uma visão que só ela vê e entende. A cabeça como que está voltada para o lado donde vem essa voz misteriosa e consoladora.

A figura de Francesca é bonita, imponente mesmo. O vestido de veludo negro rola a cauda pelos degraus de mármore escuro. A cabeça é bem talhada, e a opulenta cabeleira loura desce em duas tranças bastas e longas, que, eriçadas ao contato do veludo, esvoaçam fios sutis do cabelo, como se fossem de ouro puro. A epiderme da face, alva e macia, com uma tenuíssima coloração carmínea, põe em relevo uns olhos de uma nesga do céu em manhã de primavera. Tudo nela respira isenção e pureza; é a virgem, por cujo espírito ainda não adejaram imagens apaixonadas; sonhos febricitantes ainda não agitaram aqueles nervos de menina. Só a dor da órfã absorve aquele coração, nítido como as páginas de um livro em branco. Não obstante todas essas belezas nota-se que a figura é demasiadamente alta; comparada com a dama que tem ao lado, é de exagerada estatura.

A poucos passos está aquele que deve um dia amá-la criminosamente e perdê-la, perdendo-se com ela, Paolo Malatesta, rodeado do seu cortejo, contempla Francesca, não cheio de espanto e agitado como Romeu, quando pela primeira vez vê Julieta, mas enlevado e pasmo, como um amador que admira uma obra de arte. A sua posição não nos parece natural; creio mesmo que desmente um pouco as leis do equilíbrio, pois descai o corpo para o lado contrário do ponto de apoio. O desenho da figura porém é elegante e o colorido cuidado. A cabeça, coberta com um gorro de seda, de corte gentil, é muito graciosa. O velho que está ao lado traduz melhor a admiração de que se acha possuído, e a sua figura forma um bom pendant com a de Paolo. O pagenzinho que conduz a espada, posto não agrade tanto como as outras figuras, interrompe contudo a monotonia que existiria, se em seu lugar estivesse outro homem.

O fundo da tela é de bom efeito; a entrada do adro e o pórtico arcado que lhe fica à esquerda, reproduzindo da arquitetura medieva seus cortes retos e formas geométricas, simboliza a rudeza e prepotência dos tempos feudais; aqui porém, mais que em qualquer outro ponto do quadro, é que o artista transgrediu as regras da perspectiva por tal modo, que vai além de simples descuido. Francesca da Rimini é um trabalho que faz honra ao moço artista, mesmo com os senões que os mais exigentes lhe têm notado".


A CRÍTICA DE LUIZ GONZAGA DUQUE ESTRADA EM 1888

"Como obra de valor pela composição, entre todas que Aurélio tem produzido, acha-se em primeiro lugar o Encontro de Paolo e Francesca da Rimini, em que estão observadas, com vivo interesse, todas as leis da unidade e da variedade. A tela inteira é de um brio magistral. A fisionomia de Francesca, orando, tem uma fineza esquisita, uma inarrável expressão de crença e de devotamento. A pele é fresca, láctea e ruborizada; um pouco transparente. Ajoelhada sobre o pedestal do mausoléu dos seus antepassados, toda vestida de preto, reza com fervor, apoiando os cotovelos sobre o túmulo, as mãos erguidas, os olhos azuis levantados para o céu. Do alto da cabeça redonda pendem duas serpentes de ouro que repousam voluptuosamente sobre as suas espáduas envolvidas no veludo negro do vestido, cuja cauda, numa grande curva doce, como o lombo recurvo de um urso preto, descansa em cima do primeiro degrau de mármore. A aia acompanha-a neste momento. Ajoelhada perto do túmulo, de costas para a frente do quadro, passa os olhos pelo livro de orações. Junto dela arde o incenso em uma cacholeta de bronze. Ao fundo, no pátio do castelo dos senhores de Ravena, está Paolo, em pé, em posição contemplativa, cercado de homens d'armas. Na frente dessa pequena turba, menos de uma corja, um pagenzinho, encantadoramente belo, porém afetado na atitude, vem trazer à senhora a espada do cunhado que a contempla, enamorado e mudo".

 

FRANCISCO AURÉLIO DE FIGUEIREDO E MELO (1856-1916) Francesca da Rimini, 1883, óleo sobre tela, 272,0 x 206,0 cm
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro RJ



TEXTOS:
FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações, Rio de Janeiro, Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885, p.142-147  •  ESTRADA, Luiz Gonzaga Duque. A Arte Brasileira: Pintura e Escultura, Rio de Janeiro, H. Lombaerts Editor, 1888, p.165-166.

IMAGEM:
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