Carlos Roberto Maciel Levy

Crítico e Historiador de arte

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Fotografia reproduzida de: Laudelino de Oliveira Freire. Um século de pintura, Tipografia Röhe, 1916, p.161

Homenagens

Vítor Meireles de Lima 1832-1903
CENTENÁRIO DE MORTE EM 2003

Numa mesma geração, três pintores, Vítor Meireles de Lima, Pedro Américo de Figueiredo e Melo e João Zeferino da Costa, estipulam na pintura brasileira um panorama de conquistas brilhantes, não só entre os de sua geração como entre os da que os sucede. E verdade que o rigorismo acadêmico não se perde, não se percebem ainda traços mínimos de novas concepções plásticas que há muito davam ânimo outro à pintura européia, em cujo ambiente iam nossos artistas aperfeiçoar-se. Estavam lá em franco sucesso o Realismo e o Romantismo. Verifica-se, todavia, nas obras dos três mestres de nossa pintura, que o preconceito neoclássico adquire sentido mais audacioso, mais venturoso, alcançando terreno que até então não era conhecido em nossa pintura. Vítor Meireles, nascido em Santa Catarina, Zeferino da Costa no Rio de Janeiro e Pedro Américo na Paraíba dividiram, numa ótima coincidência, os favores da arte pela extensão imensa do Brasil, significando bem os elos de uma comunhão artística nacional.

Vítor Meireles transfere-se para o Rio de Janeiro em março de 1847 e matricula-se na Academia de Belas Artes. Logo demonstra temperamento totalmente aplicado à sua arte e, já em 1853, se encontra em Roma com o Prêmio de Viagem, onde estuda com Minardi, que em pouco tempo não o satisfaz. Passa a trabalhar em Florença com Nicolau Consoni, e se dedica à composição. Na Itália realiza numerosos estudos de pequenas dimensões, em simples esboços, de cabeças e tipos populares com indumentária característica, que hoje são uma parte muito estimada em sua obra, dadas as qualidades de pintura espontânea que revelam, não muito natural em seu estilo, e se encontram no acervo do MNBA.

Sua pensão é prorrogada por interferência de seu mestre e amigo Manuel de Araújo Porto Alegre, que o aconselha a ir para Paris, a fim de estudar com o famoso Delaroche. Falece este às vésperas da chegada de Vítor, que se dirige, então, ao ateliê do italiano Castaldi, também com destaque no ambiente. Sob a influência deste, pinta o quadro A bacante (no MNBA). Decide, por fim, trabalhar inteiramente por sua conta, até que, em 1859, diante do excelente progresso demonstrado, mais uma vez Porto Alegre, então diretor da Academia, obtém o prosseguimento de sua pensão. Dedica-se ferrenhamente ao estudo do desenho e faz cópias de vários mestres franceses. É quando realiza a grande composição Primeira missa no Brasil. Esta tela foi exibida com grande sucesso no Salon de Paris (1861).

Vítor foi o primeiro pintor brasileiro a expor naquele importante certame de artistas franceses, no qual, até então, tornava-se muito difícil o ingresso de estrangeiros. Será o quadro em que melhor se condensa a capacidade artística de Vítor Meireles, tanto no que concerne ao desenho e ao ritmo da composição, como às qualidades, propriamente, da pintura. Qualidades também de pintor meticuloso já haviam sido demonstradas em A bacante, tela que precede de pouco a Primeira missa.

Estavam na moda as composições com temas históricos em grandes dimensões. É levado a realizá-las, tão prontamente retorna ao Brasil, após oito anos no estrangeiro. Ocupa a cadeira de pintura na Academia e, em seguida, começam as encomendas do Governo. O Ministério da Marinha pede-lhe duas telas sobre a guerra do Paraguai, registrando as batalhas navais da Passagem de Humaitá e de Riachuelo.

Meticuloso na exatidão de detalhes, o pintor viaja para o local, a fim de melhor encenar e ambientar os temas. Apesar de desaconselhado, assiste do convés da embarcação Brasil aos ferozes bombardeios. Com os apontamentos desenhados e escritos, e muito retido pela visão, executa, no Rio de Janeiro, ambos os quadros em ateliê improvisado no Convento de Santo Antônio. Juntamente com a Primeira missa no Brasil, essas duas telas foram mandadas à Exposição Internacional de Filadélfia (1872).

A Batalha do Riachuelo, no retorno, destruiu-se, por ter sido esquecida longo tempo encerrada no caixote em recanto úmido. O quadro que pode ser visto no MNBA, com o mesmo título, é uma réplica feita pelo próprio Vítor Meireles, que retorna a Paris e, recuperando-se do desânimo, encontra disposição para fazê-lo num ateliê do Boulevard Vaugirard. Incompatível com seu temperamento, esse gênero não lhe proporciona oportunidade de melhor demonstrar-se. Dentre suas telas de amplas dimensões e temas históricos, destacam-se, ainda, Batalha dos Guararapes e Coroação da Princesa Isabel, também encomendas oficiais. As duas comprovam-se documentários preciosos, pois nenhum detalhe lhes escapa. As personagens são sempre rigorosamente estudadas e valem como autênticos retratos. Na representação das batalhas, jamais consegue alcançar o atordoante particular à cena; porém, foi severo e exemplar quanto à concepção acadêmica, não descurando de uma excelente disposição das massas e das luzes que visam destacá-las no conjunto de uma perspectiva executada com segurança absoluta.

Em Coroação da Princesa Isabel, ainda a fidelidade dos muitos retratos, pois agrupa, este quadro, as personalidades de maior destaque presentes à cerimônia, o que, sem dúvida, resulta num importante documento da época. Batalha dos Guararapes foi encomendada quando também a Batalha do Avaí o foi a Pedro Américo, e nas proporções incomuns destas duas composições fica bem medida a veleidade imperial no formular seus parâmetros culturais acadêmicos, à sombra dos exemplos do neoclassicismo napoleônico. Quando exposta no Rio de Janeiro, a Batalha dos Guararapes recebeu grandes aplausos mas também críticas severas. Destas, o pintor se defendeu com longo arrazoado que fez publicar na imprensa, dando explicação sobre os cuidados que teve para realizar o tema conforme as mais rigorosas aferições acadêmicas, de que dizia jamais alhear-se.

Trechos da defesa que faz Vítor Meireles de sua tela ante as muitas restrições da crítica, dirão bem do sentido que o mestre impunha a seu próprio critério artístico: "O movimento na arte de compor um quadro não é nem pode ser tomado no sentido que lhe querem dar os nossos críticos. O movimento resulta do contraste das figuras entre si e dos grupos entre uns e outros; desse contraste, nas atitudes e na variedade das expressões, assim como também nos efeitos bem calculados das massas de sombra e de luz, pela perfeita inteligência da perspectiva, que, graduando os planos dá também a devida proporção entre as figuras em seus diferentes afastamentos, nasce a natureza do movimento sob o aspecto do verossímil, e não com o cunho do delírio. Nunca o movimento em um quadro, no seu único e verdadeiro sentido tecnológico, se consegue senão à custa da ordem, dependente da unidade principal, que tudo subordina no acordo filosófico do assunto com os seres que retratam. Para que a ação seja uma, deve apresentar uma idéia dominante, sem ter nada de estranho, nem de supérfluo ao assunto de que se trata, mesmo porque do sublime ao ridículo a distância é só um passo. Os meus estudos feitos na Europa, nos países onde mais se engrandeceu o culto das musas, deram-me o conhecimento, ao menos, dos princípios fundamentais da composição artística - que não se eleva ou se abate pela vontade do artista ou dos que a deprimem".

A fidelidade do pintor à severidade dos preceitos acadêmicos neoclassicistas era integral e nenhuma consideração à margem dessa posição o demovia de seus propósitos artísticos. Gonzaga Duque Estrada, um dos críticos que opuseram restrições à concepção da Batalha dos Guararapes quando foi exibida no Rio de Janeiro, acusando-a, sobretudo, de carência de dramaticidade, de detalhes que traduzissem melhor a ferocidade da luta, reconhece que, nessa defesa do pintor, ia bem o seu próprio retrato, e o documento de seu radicalismo ideológico, "tendo aprendido a idolatrar a forma, a pureza da linha, nunca tentou abandonar este culto, porque, para tanto, fora preciso partir o coração". Não resta dúvida que, na composição desenvolvida em grandes proporções, o cuidado excessivo do desenho sacrificou muito a atenção à pintura, tornando-se esta por demais condicionada à responsabilidade daquele.

A tela Moema, pintada em 1862, recomenda muito mais a sensibilidade do pintor. Prestou-se à expansão do sentimento poético do artista, expressão esta que sempre transparece nos detalhes relativos à natureza em suas composições históricas, nos planos longínquos, nos céus cálidos, na vegetação tropical. O que é dado verificar até mesmo na ambientação da Batalha dos Guararapes, onde a responsabilidade do documentário não afeta a sensibilidade. Muito embora se possa apontar certo formalismo acadêmico na figura da índia, Moema serve como exemplo do espírito lírico de Vítor Meireles e de sua humildade diante da natureza.

As mesmas qualidades podem ser apreciadas no Panorama do Rio de Janeiro, cujos estudos parcelados (no MNBA) fazem prova de excelente capacidade pictórica. Neles o mestre catarinense demonstra superar o simples imitativo do desenho acadêmico, quando fosse possível sua sensibilidade se apurar na observação da natureza. Esse Panorama, executado em Bruxelas (Bélgica), e lá exposto, foi posteriormente mostrado no Rio de Janeiro, em recinto com entrada paga. Lamentavelmente, em vista de suas proporções que exigiam cuidados especiais, foi por fim destruído.

A produção de Vítor Meireles foi intensa, sobretudo no período de 1861 a 1879. Notável sua atuação no magistério de arte. Sua influência é decisiva sobre os demais pintores, até mesmo de sua própria geração. Ocupa a cadeira de pintura da Academia de Belas Artes de 1862 até o evento republicano, quando se vê afastado do cargo por suas convicções políticas, que não podiam permitir-lhe prosseguir no ensino oficial. Pode-se dizer que falta à obra de Vítor Meireles a audácia que permite ao artista os lances das criações geniais; todavia, se lhe deve reconhecer que reúne o primoroso desenho, a sedução de detalhes, o requinte na combinação tonal, e um certo ímpeto na matéria pictórica, condição esta última que escapava inteiramente aos pintores então formados pela Academia de Belas Artes.

Em Florianópolis, o velho casarão de dois andares em que nasceu Vítor Meireles foi adquirido e nele instalado, por iniciativa de um grupo de admiradores e com contribuição do Governo do Estado de Santa Catarina, a Casa de Vítor Meireles onde são guardados documentos, objetos e trabalhos do pintor.

Quirino Campofiorito
Extraído do livro História da pintura brasileira no século XIX, Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1983, p.161-166.



TEXTO
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BIBLIOGRAFIA

RUBENS, Carlos. Vitor Meireles: sua vida e sua obra, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1945

GUIMARÃES, Argeu de Segadas Vianna. Auréola de Vítor Meireles, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1977

MELLO JÚNIOR, Donato et alii. Victor Meirelles de Lima 1832-1903, Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1982

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