A Caridade, circa 1842, gesso pintado, 200 cm de altura, Casa dos Expostos da Fundação Romão de Matos Duarte, Rio de Janeiro
|
Homenagens
Ferdinand Pettrich 1798-1872 BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO EM 1998
Na correspondência de Manuel de Araújo Porto Alegre, existente no Arquivo da Casa Imperial, há valiosa informação para os estudiosos da história da arte brasileira. Escrevendo a Silvestre Pinheiro, em 10 de abril de 1844, relata o futuro barão de Santo Angelo: "Daqui a ano e meio, verão os brasileiros a primeira estátua de mármore feita no seu país, e começarão a habituar-se a um espetáculo novo para eles, e uma vez convencidos de sua necessidade hão de ir continuando." [1]
O escultor, cujo nome não se declara na carta, é o alemão Ferdinand Friedrich August Pettrich, que aparece, pela primeira vez, numa exposição da Academia de Belas Artes, no ano anterior, em 1843, com a produção de retratos, um grupo da Caridade carregando duas crianças, e uma cabeça de Jesus Cristo. [2] A residência do artista indica-se no catálogo, à rua do Ouvidor, nº 41.
O mesmo Porto Alegre, pela imprensa, identifica alguns bustos: do mordomo da Casa Imperial Paulo Barbosa, do irmão deste Antônio Barbosa da Silva, do doutor Guido, de João Samuel (o representante dos banqueiros Samuel Phillips & Cia.) e do agente diplomático do reino de Nápoles, Genaro Merolla. [3]
O sucesso da participação na mostra da Academia evidencia-se com o decreto imperial de 8 de fevereiro de 1844, que o nomeia Cavaleiro da Ordem de Cristo. [4]
A estátua em mármore, a primeira confeccionada no Brasil, concluída em 1846, destina-se ao estabelecimento hospitalar da Praia Vermelha. Representa o Imperador dom Pedro II, em trajes majestáticos, cujo modelo em gesso guarda-se na Academia, hoje Escola Nacional de Belas Artes.
Pettrich, segundo Bénézit [5], nasceu em Dresden, a 3 de dezembro de 1798, filho do afamado escultor Franz Pettrich, que o inicia na carreira artística. Em Roma, completa os estudos com o célebre Thorwaldsen, seguindo após para os Estados Unidos, em 1835.
Sete anos de vida norte-americana nada lhe rendem. Confessa a Samuel Greene Arnold, que o visita em fins de 1847 para admirar a estátua do imperador, a impossibilidade de aí permanecer, por jacobinismo artístico. [6]
Podemos, assim, limitar entre 1842 e 1843, a chegada ao Rio de Janeiro do escultor. Em 1844, com entrada paga de 320 réis e grátis às damas, num dos salões da praça do Comércio, no mês de dezembro, através do Diário do Rio de Janeiro, anuncia uma exposição de suas obras: modelos ao natural das estátuas de dom Pedro II, da Caridade, e de Napoleão no rochedo de Santa Helena, além de bustos e medalhões. [7]
No ano seguinte, comparece à exposição da Academia, com três bustos em gesso e um em mármore. A residência, segundo o catálogo, agora é no Paço da Cidade, em dependências imperiais, espécie de hóspede do Imperador. [8] Aí permanece, com a família, até 1861, quando viaja para a Itália.
O cientista Hermann Burmeister, que chega ao Rio de Janeiro em fins de 1850, conhece-o. Qualifica-o de talentoso e informa que trabalha quase que somente para o monarca. [9]
Os Pettrich, certa noite, provocam um sério incidente com a guarda do palácio. Instaura-se, então, um inquérito a fim de apurar-se os fatos da noite de 29 de setembro de 1850, e recebem intimação para depôr. A briga origina-se com a sentinela do 4º Batalhão da Guarda Nacional. Como o escultor não fale bem o português, presta declarações em francês. Parece-nos que não há consequências, pois continuam hóspedes de dom Pedro II, e tudo estaria ignorado se não existissem dois ofícios do mordomo da Casa Imperial. [10]
O apreço do imperador pelo artista, acompanhamos na correspondência do mordomo. Durante as obras de remodelação do paço de São Cristóvão, fase de Porto Alegre, necessita-se uma escada de mármore branco. Solicitada a cooperação de Pettrich, ele indica o escultor Pedro Termerani, residente em Roma. Ao então secretário da Legação José Bernardo de Figueiredo, mais tarde barão de Alhandra, transmitem-se a encomenda e a indicação do "...artista distinto e que muito tem merecido da benignidade de Sua Majestade o Imperador", segundo as palavras do mordomo José Maria Velho da Silva. [11]
De fato, o escultor Termerani assina um contrato para fornecer a escada de mármore branco, 48 degraus, ao preço de 48 escudos cada. [12] O navio sardo Fiamentta, no ano seguinte, traz de Gênova a encomenda, que obtém "...aprovação geral pela excelente qualidade do mármore e pela perfeita execução", segundo o ofício do mordomo. A Pettrich, confia o seu colega de Roma uma fórmula especial de cimento para uma melhor solidez e união. A despesa totaliza 811 escudos. [13]
Dois são os filhos do artista, Oscar e Augusto, ambos nascidos na capital italiana, respectivamente a 8 de janeiro de 1831 e 21 de dezembro de 1832. E apesar da sua confidência a Samuel Greene Arnold ("...no seran artistas porque no quiere que sean desgraciados"), em 1850, na exposição da Academia, comparecem com uma cabeça de Ceres colossal. [14]
Estátua em mármore, de igual imponência a de dom Pedro II, começa ele a esculpir, no primeiro semestre de 1854, por encomenda imperial. A 10 de março desse ano, falece José Clemente Pereira, o benemérito provedor da Santa Casa de Misericórdia, de tantas realizações caritativas para o estabelecimento entregue à sua direção, desde 1838.
Três dias mais tarde, exteriorizando o grande pesar do imperador e numa homenagem à memória de quem tanto trabalhou, assina o monarca o decreto nº 365, que faz o elogio do desaparecido provedor e determina a confecção de uma estátua de mármore, para ser colocada defronte à sua, no hospício da Praia Vermelha. [15]
Em 22 de maio, por outro decreto, contrata-se com Pettrich o fornecimento da estátua de José Clemente Pereira, por 20:000$000, pagos em três prestações: 5:000$000 no ato, igual quantia dentro de um ano, e os restantes 10:000$000 na conclusão da obra, possivelmente dentro de dois anos. [16]
Nos livros de despesa da mordomia, encontramos todos os pagamentos. Em junho de 1854, 5:000$000; em maio de 1855, 5:000$000; e finalmente, em maio de 1857, o saldo de 10:000$000. [17]
Assim, podemos concluir que a estátua pedestre em mármore de José Clemente Pereira, "...de balandrau e vara de provedor da Misericórdia na mão esquerda, com o braço e a mão direita estendidos para a frente", consome do artista três anos de estafantes trabalhos.
O preço elevado de 20:000$000, quantia considerável para a época (lembremos que a fazenda do Morro Queimado, em 1851, custa 24:000$000), deve ser posto em equação com o tempo despendido pelo escultor.
Embora só regresse a Roma em 1861, não comparece mais às exposições da Academia, diminuindo consideravelmente, em quantidade, a produção artística.
Feito o inventário dos trabalhos, em quase vinte anos de vida carioca, julgamos que sua atividade não se pode classificar de dinâmica. Na Exposição de História do Brasil em 1881, encontram-se quatro bustos em mármore (de João Alves Carneiro, de José Clemente Pereira [18], de Joaquim de Babo Pinto e do barão de Guapimirim, Tomé Ribeiro de Faria) e um gesso (o do padre José Maurício Nunes Garcia), além das já referidas estátuas de dom Pedro II e de José Clemente Pereira. Conhecem-se mais os bustos de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho e o do marquês de São João Marcos. Citam-se a imagem de São Pedro de Alcântara e as estátuas de Pinel, Napoleão, Esquirol, Anchieta e frei Miguel de Contreiras. [19]
E na trigésima carta ao amigo ausente, o futuro visconde de Rio Branco elogia "...quatro primorosos bustos de mármore", existentes na Santa Casa de Misericórdia: Hipócrates, Ambrósio Paré, doutor Melo Franco e o já referido João Alves Carneiro. [20]
Graças a um ofício do mordomo Nogueira da Gama, temos uma valiosa notícia. Em 1864, por intermédio de José Maria Jacinto Rabelo, Pettrich oferece a dom Pedro II um busto em mármore. O presente aceito pelo imperador, chega ao Rio de Janeiro, e por determinações do monarca coloca-se na sala de sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Passam-se os anos, e em 1868, o escultor indaga do mordomo o paradeiro da sua obra, respondendo-lhe então, com todos os pormenores, o ofício de 18 de março de 1869. [21]
Em 1871, no mês de novembro, dom Pedro II visita a cidade de Roma e procura localizar o seu hóspede do paço da Cidade. Eis o que se lê, no manuscrito de Louis Alexis Boulanger:
"Antes de partir, sua majestade quis deixar uma prova, maior do que todas, de seu nobre e bondoso coração. Sua majestade soubera, indiretamente, que um escultor, que tinha habitado outrora por muitos anos no Rio de Janeiro, e que então residia em Roma, provava reveses de fortuna, e achava-se enfermo, carregado de família e sem meios de sustentá-la. O imperador, antes de tudo, mandou-lhe uma avultada quantia, com delicadeza tal que o pobre artista não pôde ofender-se nem corar. De manhã, bateu na porta da modesta morada do escultor Pettrich. Abrem a porta e o imperador entra sem ser anunciado e sem se ter feito aunciar!
A cena que se seguiu não pode ser bosquejada: o pobre do velho estava lá, no leito de dor, com metade do corpo paralisado; seus filhos estavam em derredor. Quando o velho ouviu a voz do imperador, voz que ele não ouvia há dez anos, os soluços lhe cortaram as palavras, enquanto o imperador comovido lhe apertava as mãos, na cabeceira da cama, e lhe prodigalizava palavras de consolação." [22]
Dois meses mais tarde, a 14 de fevereiro de 1872, falece Ferdinand Pettrich, cuja arte sempre louvada permanece entre nós, através de suas esculturas, admiradas na reitoria da Universidade, na Escola de Belas Artes, no Museu Imperial, na Câmara de Petrópolis, etc.
Ainda um derradeiro auxílio imperial à viúva e aos filhos do artista consta da correspondência do ministro brasileiro em Roma, o barão de Javari. Em fevereiro de 1883, encaminha-lhe o mordomo Nogueira da Gama a súplica recebida por dom Pedro II, com o pedido de informações e do arbitramento da quantia necessária. [23] Três meses após, segue a ordem de pagamento de 300 francos, donativo aos necessitados Pettrich. [24]
Finalmente, curiosa informação recolhemos do Diário de um presidente, do desembargador Rodrigo de Souza da Silva Pontes, manuscrito do Arquivo Histórico do Itamarati, divulgado em resumo por José Antônio Soares de Souza. [25] Em agosto de 1843, Silva Pontes encomenda a Pettrich um busto da esposa do desembargador Veloso, incumbência que lhe dera o colega, no regresso da estada em Belém do Pará, onde exerce a presidência da província.
O escultor cobra 150$000 pelo busto e 4$000 de um engradado, para a remessa do mesmo. E o prazo da entrega combinado de duas semanas, dilata-se a um mês. Na mesma ocasião, Silva Pontes adquire, também para o colega de São Luiz, uma moldura dourada de José Ruqué, o afamado dourador de madeira da Casa Imperial, [26] pagando-lhe 80$000 e mais 5$000 de encaixotamento.
Há pois, grande desnível nos preços da escultura e da moldura dourada: 150$000 e 80$000. Verdadeiro disparate artístico.
Guilherme Auler Fonte: O escultor Pettrich, in Presença de alguns artistas germânicos no Brasil (I). Separata da Revista Vozes, ano 57, dezembro de 1963, p.896-902.
|
TEXTO Copyright © sucessores de Guilherme Auler, 1963-2023
NOTAS
1. Grifo nosso. Arquivo da Casa Imperial (Museu Imperial, Petrópolis), maço 107, documento 5188.
2. Notícia do Palácio da Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro, 1843, Tipografia Nacional. As obras de Pettrich encontram-se enumeradas: 6, 7, 10-15, 16 e 17.
3. Artigo da Minerva Brasiliense, edição de 15 de dezembro de 1843, citado por Pedro Calmon, em O palácio da Praia Vermelha, Rio de Janeiro, 1952, p.46-47.
4. Arquivo Nacional, Seção Histórica, Decretos Honoríficos, caixa 789, pacotilha 4, documento 34. O texto é o seguinte: "Querendo dar uma pública demonstração do quanto desejo honrar as artes e aqueles que as cultivam, e tendo atenção ao modo por que se distinguiram Alexandre Cicarelli e Fernando Pettrich, pelas produções que apresentaram na última exposição, que teve lugar na Academia das Belas Artes desta Corte: Hei por bem fazer-lhes mercê de os nomear Cavaleiros da Ordem de Cristo. Palácio do Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1844, 23º da Independência e do Império. – Imperador com rubrica – José Carlos Pereira de Almeida Torres". O pagamento do diploma, 20$000, o agraciado Pettrich efetuou, em 12 de março de 1844, como informa o documento C, 10005, 53 da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
5. Dicctionnaire des peintres, sculpteurs, dessinateurs et graveurs, 1953, tomo 6, p.632.
6. Viaje por America del Sur. Buenos Aires, 1951, p. 94. A visita do escritor norte-americano realiza-se no sábado, 18 de dezembro de 1847.
7. Gentileza de informação do historiador José Antônio Soares de Souza.
8. Notícia do palácio da Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro, 1845, Tipografia Nacional. No paço da Cidade também residem, em épocas diferentes, por magnanimidade de dom Pedro II, os pintores Alexandre Ciccarelli e Francisco Biard e o escultor Cândido Caetano de Almeida Reis.
9. Viagem ao Brasil, pelo doutor Hermann Burmeister, São Paulo, 1952, p.65.
10. Livros da mordomia da Casa Imperial, Museu Imperial, Petrópolis, códice 42, ofícios de 12 de outubro de 1850 e 5 de novembro de 1850.
11. Idem, idem, códice 41, ofício de 13 de fevereiro de 1847.
12. Idem, idem, idem, ofícios de 29 de setembro de 1847 e 31 de dezembro de 1847.
13. Idem, idem, idem, ofício de 7 de março de 1848.
14. Notícia do palácio da Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro, 1850, Tipografia Nacional, Escultura, nº 3
15. Livros da mordomia da Casa Imperial, Museu Imperial, Petrópolis, códice 34.
16. Idem, idem, idem, códice 34, decreto 371 de 22 de maio de 1854.
17. Arquivo da Superintendência, Petrópolis, códices 229 e 230. Os pagamentos são autorizados pelas portarias do mordomo da Casa Imperial, em 22 de maio de 1855 e 4 de maio de 1857, respectivamente nos códices 13 e 35 dos Livros da mordomia da Casa Imperial, Museu Imperial, Petrópolis.
18. Anais da Biblioteca Nacional, v.9, 1881-1882, verbetes números 18139, 18747, 18879, 18916, 20093, 20168, 20240 e 20276.
19. O palácio da Praia Vermelha, por Pedro Calmon, Rio de Janeiro, 1952, p.48-49
20. Cartas ao amigo ausente, por José Maria da Silva Paranhos, Instituto Rio Branco, 1953, p.182
21. Livros da mordomia da Casa Imperial, Museu Imperial, Petrópolis, códice 44. Diz o ofício de 18 de março de 1869:
"Ilmo. Senhor
De ordem de sua majestade o imperador, respondo à carta de V. S. escrita em 21 de março do próximo passado e entregue no dia 14 de março do corrente ano, na qual declara V. S. que há cinco anos oferecera ao mesmo augusto senhor, por intermédio do senhor Jacinto Rebelo, um busto de mármore de que trata o dito ofício, e que do mesmo senhor Jacinto recebera a resposta de que sua majestade o aceitara, e que tendo enviado depois o referido busto, não tinha recebido comunicação oficial de o ter sua majestade recebido.
Com efeito, foi ele entregue a sua majestade o imperador, e por ordem do mesmo augusto senhor, colocado na sala de sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
O fato de não ser V. S. prevenido da recepção foi sem dúvida por não ter corrido pela mordomia da Casa Imperial a oferta e nada constar a semelhante respeito nessa repartição.
À vista do que deixo expedido, ficará V. S. inteligenciado de que sua majestade acolheu benignamente a oferta feita por V. S. mandando depositá-la no lugar acima indicado.
Deus guarde a V. S.
Mordomia da Casa Imperial, 18 de março de 1869.
Ilmo. Sr. Fernando Pettrich.
(as.) Nicolau Antônio Nogueira Vale da Gama".
22. Viagem de suas majestades imperiais na Europa, 1871-1872. Arquivo do Grão Pará, Petrópolis, p.133-134
23. Livros da mordomia da Casa Imperial, Museu Imperial, Petrópolis, códice 53, ofício de 16 de fevereiro de 1883.
24. Idem, idem, idem, códice 53, ofício de 15 de maio de 1883.
25. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 227, abril de 1955. Do trabalho "Um caricaturista brasileiro no Rio da Prata" imprimiu-se uma separata, onde, na página 33, encontram-se as referências a Pettrich.
26. Arquivo da Superintendência, Petrópolis, códice 76, alvará de 18 de junho de 1845.
|