Obras em Preparação
VINET: UM PAISAGISTA FRANCÊS NO BRASIL DO SÉCULO XIX
INTRODUÇÃO
Como considerar a questão do paisagismo na pintura brasileira, tentando
estabelecer os fundamentos de um modelo de desenvolvimento diacrônico cuja
principal característica possa ser a de evidenciar as limitações geradas
pela estética do neoclassicismo nas versões disseminadas através da Missão
Artística Francesa de 1816?
Em geral, determinados pontos-de-vista aplicados a este
assunto são passíveis de serem acusados de demasiada simplificação, quando
não refutados como mero passionalismo ideológico. Temos de aceitar como
irrefutável, porém, que o sistema de representação simbólica típico da
estética neoclássica configurava mais sua noção intrínseca de arte do que
propriamente a opção por uma temática específica, constituído deste modo
como uma linguagem não assumida enquanto tal e superlativamente operada
como doutrina.
NEOCLACISSISMO, PODER E CONTESTAÇÃO
Será necessário observar que os artistas franceses de 1816
identificaram-se plenamente com a função de missionários, ainda que em
tempos e escalas muito diversos. Puderam, por isso, consolidar uma
imbatível organização destinada à implantação e à difusão dos conceitos
estéticos aos quais se filiavam, programa urgente porque também questão
liminar de sobrevivência física e espiritual em um ambiente originalmente
hostil. Não cremos suficientemente demonstrada qualquer hipótese que espere
definir o ensino, enquanto caminho de aprimoramento cultural e
desenvolvimento social autônomo, como projeto essencial dos pintores
liderados por Lebreton; e, também demonstrado de maneira insuficiente,
preferimos acreditar na possibilidade de ocorrência do ensino como
estratégia vital para a disseminação hegemônica de uma determinada leitura
da realidade através da arte.
Estas reflexões remetem a um ângulo importantíssimo, ainda
não discutido com pertinência no que concerne à Missão Francesa a ao
Neoclassicismo no Brasil em geral: a problemática do poder, de sua retórica
fortemente adaptável e eficaz para o contexto de uma cultura nacional em
formação. Não se pode negar que a história da Academia das Belas Artes, em
sua origem e evolução, terá sido sempre a crônica de uma luta violenta e
constante pelo poder, dissimulada quando conveniente e explícita e
desafiadora quando impossível acobertá-la. E uma situação deste tipo teria
sido possível sem o amparo de uma estética fundada no autoritarismo, na
rigidez e na auto-suficiência ?
Temos procurado estabelecer algo semelhante a uma
infraestrutura conceitual em torno do paisagismo na arte brasileira, que
nos permita algum dia realizar trabalho efetivamente abrangente a esse
respeito. Foi imperativo iniciar esta tarefa pela análise da atuação do
pintor alemão Johann Georg Grimm (1846-1887), seguida pelo exame da obra de
seus discípulos exponenciais, Antônio Parreiras (1860-1937) e Giovanni
Battista Castagneto (1851-1900), o que restringiu o período cronológico
estudado às duas últimas décadas do século XIX e dispensou dedicar maior
reflexão a questão tão ampla quanto a das seqüelas do neoclassicismo na
Academia Imperial das Belas Artes, de resto já então agonizante com a
monarquia. Agora, contudo, o prosseguimento de nosso projeto sobre o
paisagismo no Brasil exige que o período a ser enfocado recue até meados do
oitocentos, tornando mais próximos e intensos os complexos problemas
colocados pela influência neoclássica vista através da perspectiva do poder
institucional. Estudo que ora desenvolvemos em torno de Henri Nicolas Vinet
(1817-1876), pintor cujo papel nos parece de enorme relevância na produção
artística brasileira do século passado.
PAISAGISTA NA FRANÇA E NO BRASIL
Henri Nicolas Vinet nasceu em Paris, França, a 9 de
setembro de 1817. Seus pais, Henri Nicolas Vinet e Madeleine Angelique
Vinet, residiam à rue du Mont-Parnasse número 8, no 11e.
arrondissement da cidade, onde possivelmente dedicavam-se ao comércio. As
fontes francesas de informação bibliográficas são em geral omissas a
respeito da biografia do artista, e a referência mais significativa quanto
à sua origem indica sumariamente a suposição de nascimento em Paris, "...a
Morainvilliers par Poissy". Ignora-se o decurso de sua existência até o
início da década de 1840, cabendo portanto estabelecer se dispôs ou não de
formação educacional regular. Certo é que em 1841 participava do Salon
em Paris, com uma pintura, Vue de la fôret de Fontainebleau par une
matinée d'octobre, permitindo assim admitir pelo menos duas
possibilidades imediatas: que já possuía formação artística satisfatória
para ser aceito em importante exposição coletiva, e que por volta do ano
anterior já praticava um paisagismo de feição naturalista, ambientado ao ar
livre numa região que motivara, como tema, também a Théodore Rousseau
(1812-1867) e a Jean-Baptiste-Camille Corot (1796-1875), entre outros
notáveis mestres franceses do gênero.
Em 1843 e 1845 participou novamente da exposição, com uma
paisagem em cada ano apenas. Neste período terá dado curso a intensa
atividade, trabalhando nas proximidades de Paris e restringindo suas
excursões aos limites dos departamentos de Seine-et-Oise e Seine-et-Marne,
exceto por breve estada na Normandia. Em 1848, como resultado dos esforços
dos anos anteriores, apresentou ao Salon quatro paisagens, sendo que
uma delas, o estudo Vue prise aux environs d'Enghien - Vallée de
Montmorency, fora executada em 1843. Esta pintura, embora mutilada,
está presentemente localizada no Brasil e atesta as qualidades de
formulação típicas da obra do artista cerca de quinze anos antes de deixar
a França. Vinet deslocou-se até as imediações de Le Havre antes de 1849,
dedicando-se persistentemente aos estudos no natural. Neste ano volta a
participar do Salon, com duas paisagens. Só tornaria a fazê-lo,
depois, em 1867, quando do Brasil enviou um único trabalho, Bananiers
aux environs de Rio de Janeiro.
FORMAÇÃO
Da vida do artista na França permanece também o enigma de
sua formação artística, sobretudo quanto às possíveis relações com Corot.
Fontes bibliográficas tradicionais brasileiras asseguram com insistência,
de modo vago e destituído de referências formais, que teria sido aluno de
Corot. Destas fontes, a mais antiga é o livro Um Século de Pintura, de
Laudelino Freire (1916), e pode-se aceitar que, salvo desconhecida menção
anterior e mais completa, todas as demais a ela subseqüentes limitaram-se a
repetir a citação sem questioná-la.
O conjunto de informações européias referentes a Corot,
vasto e minucioso, preliminarmente não faz qualquer alusão ao nome de Henri
Nicolas Vinet, restando contudo aprofundar ao longo do tempo exame
específico a esse respeito. Porém, os roteiros percorridos pelo célebre
paisagista em França, em especial seus constantes e periódicos
deslocamentos para a Normandia, apresentam certa analogia com as escassas
informações até então determinadas quanto às excursões de Vinet em busca
das regiões mais adequadas para a pintura ao ar livre. Não obstante a
indefinição da questão documental, é fato evidente que sua obra acusa forte
influência de uma modalidade de paisagismo entre naturalista e romântico
bastante similar à tipologia da obra de Corot, notadamente se observarmos
elementos tais como a organização da composição e o sistema de
enquadramento dos trechos representados.
NO RIO DE JANEIRO
A partir de Laudelino Freire, quase que a totalidade de
nossos historiadores de arte assinala como data da chegada de Vinet ao
Brasil apenas o ano de 1856 (Laudelino Freire em 1916, Adalberto de Mattos
em 1922, Carlos Rubens em 1941, José Maria dos Reis Júnior em 1942, Roberto
Pontual em 1969 e Quirino Campofiorito em 1983), com exceção de dois que
foram mais vagos apontando "...meados da década de 1850" (José
Roberto Teixeira Leite em 1979 e Mário Barata em 1983). A data precisa da
chegada do artista ao Rio de Janeiro foi o dia 18 de junho de 1856, uma
quarta-feira, vindo do Havre na galera francesa Victoria. Em sua companhia
vieram a esposa Laura e o filho Camille, conforme registrado pelo Jornal do
Comércio (Movimento do Porto, 19/06/1856, p.3). Curiosamente o primeiro
sinal de suas atividades artísticas só surge quase três anos depois, com a
inclusão de trabalho de sua autoria na Exposição Geral de Belas Artes de
1859, inaugurada em março. Neste particular a lacuna pode ser explicada
pelo fato de que a realização da mostra estava interrompida há sete anos,
não obstante seja ainda singular que a pintura de Vinet então apresentada
pertencesse a um colecionador particular e houvesse sido executada na
França cerca de catorze anos antes (Vista da Normandia, coleção
J. G. Le Gros, número 88 do catálogo).
Entre 1860 e 1865 realiza prolongadas incursões ao
interior da então Província do Rio de Janeiro, escolhendo como objetivo de
suas viagens uma região de clima e paisagem invejáveis. Permanece por
diversas vezes em Santa Maria Madalena, então distrito do atual município
de Cantagalo, dirigindo-se sem cessar a localidades vizinhas como São
Sebastião do Alto, Taquaral, Córrego dos Indios, Ribeirão Vermelho e Porto
Velho do Cunha. Percorre ainda as imediações de Cachoeiras e Nova Friburgo,
atingindo São José do Barreto, perto de Macaé. As características
geográficas de acesso e respectivas distâncias entre estas localidades e o
Rio de Janeiro, avaliadas hoje, mais de cem anos após Vinet as ter
palmilhado, servem como inquestionável confirmação do empenho do artista em
procurar o assunto de seu paisagismo em consonância com a natureza agreste
e de certo modo intocada pelas transformações das cidades em crescimento,
para diante dela poder extrair a qualidade poética inerente ao motivo
representado. Os trabalhos que produz nestes locais são notáveis,
seguidamente apresentados às Exposições Gerais da Academia Imperial das
Belas Artes até 1876, ano em que faleceu.
Do Rio de Janeiro já fixara diversos aspectos, a partir de
1860: Santa Teresa, Laranjeiras, Gragoatá (em Niterói), vistas tomadas do
Largo da Carioca e do Morro do Castelo, a entrada da barra, Botafogo e
Copacabana. Sua pintura foi, sem sombra de dúvida, verdadeira novidade para
o ambiente cultural e artístico da época. Nada havia, no Brasil do início
da década de 1860, que se assemelhasse sequer ao tipo de paisagismo
praticado por Vinet. Os viajantes estrangeiros que por aqui estiveram desde
os primeiros anos do oitocentos, artistas e naturalistas, caracterizaram
suas obras pela explícita preocupação documentária, gerando frieza de
interpretação e óbvio distanciamento cientificista. Johann Moritz Rugendas
(1802-1858), algo romântico, pode ter sido exceção neste particular, como
Friedrich Hagedorn (1814-1889) o seria pela rudeza simplória e expressiva
da fatura. E todos eles, voluntariamente ou não, mantiveram bastante
distância do universo de poder e das formulações estéticas da Missão
Artística Francesa e da Academia das Belas Artes. Freqüentaram as
exposições acadêmicas, quando o fizeram, como ato de curiosidade ou de
gentileza cortesã, merecendo retribuição de igual teor. Paisagistas
estrangeiros de passagem pelo Brasil interessaram-se tanto pela pompa
formalista da Academia quanto esta se interessou pela orgulhosa
independência que eles cultivavam, ou seja, em ambos os casos mera
indiferença recíproca e a tolerância provocada pelos sentimentos próprios
de superioridade e auto-suficiência.
INTEGRAÇÃO E RECONHECIMENTO
Já os brasileiros voltados para o paisagismo neste
período, como Agostinho José da Mota (1824-1878) e, antes dele, August
Müller (1815-circa 1883), tiveram de subordinar-se aos exíguos limites
impostos pelos sucessores e epígonos da Missão, disso decorrendo
inconstância da produção paisagística e uma total carência de
espontaneidade em sua prática. A situação de Henri Nicolas Vinet foi,
portanto, única. Não fez concessões em sua arte mas persistiu em
integrar-se de algum modo ao ambiente cultural típico da metrópole na qual
se radicara: curiosamente, este comportamento híbrido, cujas implicações
parecem consignadas com clareza nos papéis desempenhados pelas partes, foi
viável e produtivo. O artista, a quem atraía o magistério e que pelo menos
desde 1866 ministrava aulas particulares em seu ateliê à rua da Quitanda
número 26, jamais esboçou a tentativa inadimissível e polêmica, nos termos
da hierarquia estética dominante, de integrar o corpo docente da Academia
Imperial das Belas Artes; a instituição, por sua vez, não lhe negou acesso
e premiação nas Exposições Gerais que promovia. Embora convicta e
exclusivamente paisagista, Vinet foi admitido às exposições de 1860, 1862
(premiado com medalha de ouro), 1865 (agraciado com o hábito da Ordem da
Rosa) a 1868, 1872, 1875 e 1876.
No ensino particular, associou-se durante curto período ao
pintor alemão Emil Bauch (1823-circa 1890), também paisagista, em 1869.
Suas atividades como professor terão obtido razoável sucesso, pois as
manteria até 1875. Fez-se bastante conhecido no Rio de Janeiro, cultivando
amplo círculo de amigos e admiradores, muitos dos quais comerciantes
franceses ou de ascendência francesa aqui estabelecidos. Destes, o
relojoeiro e ourives Pedro Simonard, proprietário de vários imóveis na
cidade, foi o mais constante adquirente de suas pinturas. Deve-se observar
que Vinet não enfrentou grandes dificuldades no horizonte profissional de
sua arte, pois significativa parte de sua produção esteve desde logo
incorporada às mais ilustres dentre as raríssimas coleções particulares à
época existentes no Rio de Janeiro.
Sua carreira no Brasil foi, considerado o gênero de
pintura que o interessava, no contexto cultural vigente, surpreendentemente
bem sucedida. Não foi possível ainda precisar o alcance específico da
influência que poderá ter exercido sobre seus contemporâneos ou sobre as
gerações que o sucederam; contudo, é conclusiva a intrigante hipótese de
relacioná-la, em caráter potencial, com a atuação de um paisagista da
estatura de Johann Georg Grimm, situação que configura dois diferentes
sistemas de autonomia e interação muito peculiares em nossa História da Arte.
PRODUÇÃO ARTÍSTICA
Não conhecemos, hoje, mais do que meia centena de pinturas
de legítima autoria de Henri Nicolas Vinet, sendo que bem menos da metade
delas incorporadas a coleções públicas oficiais. As coleções privadas
apresentam o maior contingente, em alguns casos inacessível, da produção
paisagística do artista. Mesmo supondo um expressivo fator de dispersão de
seus trabalhos, pode-se admitir que durante as quase duas décadas em que
permaneceu entre nós jamais chegou a ser um artista prolífico.
Deslocando-se sempre em busca dos trechos de paisagem mais singulares e
isolados, não temendo distâncias ou deficiências de transporte e habitação,
é natural que a própria exigência de seus propósitos artísticos impusesse
limitações quantitativas declaradas. Ademais, a dedicação continuada ao
ensino criava atribuições inteiramente diversas, pressupondo organização e
disponibilidade de horários. Sua obra européia, a julgar pela participação
nas exposições do Salon em Paris entre 1841 e 1849, e pelos
trabalhos deste período que hoje conhecemos no Brasil, foi bastante
reduzida. O mesmo se pode dizer quanto à obra brasileira, neste caso em
geral até mais ambiciosa em função dos formatos dos suportes e da
composição de vistas panorâmicas. No conjunto, uma obra quantitativamente
pouco expressiva se cotejada com os padrões que se tornariam comuns na
segunda metade do século XIX.
Quando enfocamos, entretanto, sua vertente qualitativa,
ficam nítidas a extrema homogeneidade e a relevante importância que possui.
Efetivamente, até a década de 1880, não trabalhou no Brasil do oitocentos,
permanentemente, um paisagista de obra tão notável quanto a de Henri
Nicolas Vinet. Sob inúmeros aspectos foi um firme revolucionário em relação
à estética hegemônica que encontrara no Rio de Janeiro, muito embora sem
pretender suscitar antagonismo ou conflito com o statu quo. Mas como
deixar de reconhecer o valor profundamente progressista e provocador de um
paisagismo que se propunha a interpretar espaço e atmosfera como ato
destinado a dar forma concreta à verdade da Natureza? Não mais a estéril e
afetada atitude de visar uma intrínseca correspondência entre os objetos
míticos e alegóricos de uma cena, sua composição e a respectiva maneira de
tratá-la; não mais um mero simbolismo do mundo vegetal ou a contida e
desambientada descrição botânica; não mais uma espécie de fórmula pronta
para ser aplicada à Natureza, tornando-a palco para a epopéia ou para a
incessante narrativa dos temas bíblicos e da antiguidade greco-romana:
agora, em vez da paisagem imaginária, a paisagem do real e do cotidiano, na
qual a idealização dos pastores arcádicos cede lugar às povoações de
indivíduos caracterizados por seus papéis sociais e produtivos, fossem
camponeses, senhores ou escravos, mas antes de tudo homens em sua vital
relação com a única e principal protagonista das pinturas, a paisagem em
sua poderosa simplicidade.
A obra de Henri Nicolas Vinet, sobretudo pela contingência
de sua ocorrência em momento histórico e artístico muito singular em nossa
evolução cultural, encerra valores superlativos. Demanda, é claro, um nível
de abordagem e análise extensivo e sólido, capaz enfim de situar de modo
consciente as questões essenciais que pode nos sugerir em seu significado e
em sua estrutura formal. A despeito de não ter sido ainda atingido tal
objetivo, o que esperamos possa se dar em breve, pode ser talvez oportuno
indicar alguns parâmetros relativos à definição preliminar da questão, por
intermédio da presente seqüência de anotações.
Outubro de 1988
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Estudo preliminar publicado no jornal O PRELO, Suplemento
de Cultura da Imprensa Oficial do Governo do
Estado do Rio de Janeiro, ano 1, nº 2, outubro de 1988, p.12-13.
TEXTO:
Copyright © Carlos Roberto Maciel Levy, 1988-2014. Todos os direitos reservados.
IMAGEM:
Henri Nicolas Vinet, Cascatinha da Tijuca,
circa 1876, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
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