Giovanni Battista Castagneto 1851-1900: O Pintor do Mar
PREFÁCIO,
por Alcídio Mafra de Souza
"Tarefa difícil pediu-me Carlos Roberto Maciel Levy: apresentar-lhe o livro no qual
trata da vida e da obra de um dos mais importantes pintores brasileiros do
século XIX, Castagneto.
Alivia-me o espanto causado por tal petição o fato — que o
leitor irá verificar por si mesmo — de que o autor do trabalho empenhou-se
em produzir obra pioneira. Obra que, seguramente, será recebida com o maior
apreço, pois se trata de contribuição das mais válidas à bibliografia
histórica e crítica da arte no Brasil. Por seu conteúdo, informação e
julgamento de natureza visual irá constituir-se, sem dúvida, em ponto de
partida para a reavaliação (tão necessária, frise-se) de todo um vasto
segmento da criação plástica no Brasil do século passado.
Dizem os dicionários e os entendidos que marinha é um
gênero de pintura que tem o mar por tema. No entanto, o gênero, que passou
a se afirmar no século XVI, quando, a rigor, surgem os primeiros pintores
do mar e teriam que ser eles naturais dos Países Baixos, na realidade está
presente desde a mais remota antigüidade, embora, como tal, não reconhecido — associado
que estava a criações de natureza estritamente religiosa.
Porém, recuando no tempo e no espaço, vamos encontrar o mar em pinturas e
baixo relevos já no Egito, do IV milenário antes de Cristo. O tema "água",
seja do oceano ou do rio, existe, também em Sumer e em Assur e despontará
com grande vigor na arte egeana. Ao longo dos séculos, o mar, ora calmo,
ora tempestuoso, foi sempre assunto e dele vieram se ocupando artistas
anônimos ou, então, da nomeada de um Jan Vermeyen, Vroom, Antum, Jan
Porcellis, van Cappelle, van de Velde, Turner, Jongkind, Bonnington,
Courbet, Heade, Homer, Gifford e Boudin, sem falar nos iluministas
medievais que os precederam. É toda a história de um gênero que timidamente
se manifesta no próprio alvorecer da Humanidade e, ora valor mítico, ora
tema principal, a rigor, conta a história do homem no mundo.
O mar é o poema épico, é a história de um microcosmo. O
homem moderno encara a natureza através de intermediários, só por meio de
terceiros ou para terceiros, ele próprio intermediário — através de outros
ou para outros. Com isso a intimidade se perdeu. No mar, revolto ou sereno,
o contato é direto, imediato. E o que temos são sempre histórias simples
que perpassam pelas páginas da própria História da Arte. Todo um sopro de
epopéia nascido da luta ou da contemplação permanentes do homem, que no mar
vai encontrar a fonte da própria vida.
Foi em tarefa na qual muitos vagaram no marasmo da
mesmice, que Castagneto avultou e revelou o máximo de seu poder criador, o
pleno domínio da técnica. Mas, para tanto alcançar, serviu-se de larga e
funda experiência de vida, conhecedor que era do mar, em seu conjunto e
suas nuanças. Entretanto, Castagneto não deixa de construir uma unidade
conflituosa entre o mar e o homem e daí a variedade de cenários com os
quais travamos conhecimento, à medida que repontam as ocorrências de seu
cotidiano. E é nesse sentido que vamos encontrar toda uma extraordinária
riqueza espiritual, sempre presente nas diversas obras que compõem o
conjunto de sua produção. Obra ímpar, por isso mesmo, quando comparada a
outros pintores de renome universal (...).
Melhor que nenhum outro soube captar todas as cantorias do
mar — maravilhas sentidas e ouvidas por léguas e léguas de mar e costa.
Quem nunca lidou com encantamentos de mar, areias, nuvens e céus jamais
poderá dar andamento a alegrias desse teor. E o afirmo, sem necessidade de
notários ou escrivães: o mar cresceu com Castagneto. O vai-e-vem das suas
ondas, o dourado das luzes que o ilumina não mais é o canto triste que
entra em ouvido de gente viva: é, sim, a afirmação de uma arte nossa,
iluminada pelo tropicalismo de suas cores que escorrem, todinhas, por
cenários nunca dantes imaginados. Como Vítor Meireles, não foi também homem
de rompantes ou alardes, mas como ele, apaixonado pela paisagem. Construiu
uma obra monumental e sem entrar em malhas de falatório descuidoso, foi
melhor que muitos artistas estrangeiros de sua época.
Assim, tudo considerado talvez estejam errados os
pessimistas e muitos críticos de arte que — em trafegagem de gazetas ou
conversarias ocas - não acreditam ou fazem pouco de nosso fazer artístico e
o julgam inferior ao produzido em plagas outras.
Todos esses passados tive que remexer na cabeça — já para
não falar em buscas e rebuscas em velhos apontamentos — a fim de acudir à
consideração de Carlos Roberto Maciel Levy, nunca desesquecido da farta
amizade que mutuamente nos devotamos. Diante de sua petição, impossível
responder negativamente (e que ele me perdoe, se a incumbência solicitada
ficou por fazer)".
Setembro de 1982
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Transcrito do livro publicado por Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1982, p.15-16.
TEXTO:
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IMAGEM:
Giovanni Battista Castagneto, Chalupa de uma vela navegando, 1899, coleção particular, Rio de Janeiro.
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